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“Eu não estou pedindo apenas por mim. É enquanto uma mãe iminente, um pedido de uma mulher para outra”: reflexões sobre gênero e pobreza a partir das cartas da Grande Depressão

“But I Am Not Asking for Myself Alone. It Is as a Potential Mother and as One Woman to Another”: Reflections on Gender and Poverty through Letters from the Great Depression

Resumo

As cartas destinadas a autoridades ou figuras públicas são importantes para pensarmos uma época, pois o motivo de sua feitura e as súplicas nelas contidas demonstram desigualdades sociais e questões subjetivas de forma preeminente, por serem refúgios da intimidade. À luz dos Estudos de Gênero e feministas, a partir da análise de cartas enviadas ao presidente Roosevelt e outras figuras distintas durante a Grande Depressão, este trabalho reflete sobre a crise econômica tomando como eixo de análise a pobreza. Além disso, problematiza as diferenças de gênero no âmbito de tal fenômeno, pois, no New Deal, foi sobre as mulheres que recaíram as maiores idealizações, que visavam a manter um ideal de ordem social e de gênero masculinista.

Cultura escrita; Cartas; Grande Depressão; Políticas públicas; Gênero e pobreza; Estado de bem-estar social

Abstract

Letters addressed to public authorities or figures are important for examining a time, since the reason for their writing and the requests they contain prominently demonstrate social inequalities and subjective issues, and are spaces of intimacy. In the light of gender and feminist studies, letters sent to President Roosevelt and other figures during the Great Depression are analyzed to reflect on the economic crisis, focusing on the analysis of poverty. The study also problematizes gender differences in the realm of this phenomenon, since during the New Deal the strongest idealizations fell upon women. These idealizations sought to maintain a masculinist social and gender ideal.

Written culture; Letters; Great Depression; Public policy; Gender and poverty; welfare state

Introdução

As referências e nomes dados à década de 1930 são muitos. Os Tempos Difíceis, A Década da Crise, Os Sujos Anos Trinta, os Depression Years (Anos da Depressão). Todas essas nomenclaturas partilham de uma sensibilidade e uma vontade comum: o desejo de demonstrar a complexidade social, política, econômica e cultural que os Estados Unidos estiveram inseridos entre os últimos anos da década de 1920 e a Segunda Guerra Mundial.

A despeito de todo otimismo do início dos anos 20 na América, na década de 1930 os Estados Unidos mostraram-se uma nação fragilizada, que ensaiou gerir no plano econômico e social uma saída para se restabelecer e socorrer milhões de seus cidadãos, nos campos e na cidade. O país se mostrou muito debilitado e repleto de ansiedades sociais especialmente pertinentes à classe trabalhadora e às mulheres.

As cartas dessa época são uma possibilidade de analisar como foi viver esse período a partir da perspectiva dos cidadãos comuns. As cartas destinadas a autoridades ou figuras públicas são importantes para pensarmos uma época, visto que, muitas vezes, o motivo de sua feitura e as súplicas nelas contidas demonstram desigualdades sociais e questões subjetivas de forma preeminente, por serem refúgios da intimidade (Adámez-Castro, 2020ADÁMEZ-CASTRO, Guadalupe. Las cartas al poder. Definición y evolución de una práctica epistolar (siglos XVI al XX). Historia y sociedad, n. 38, 2020, pp.46-70 [https://revistas.unal.edu.co/index.php/hisysoc/article/view/82099 - acesso em: 30 set. 2020].
https://revistas.unal.edu.co/index.php/h...
). A análise epistolar (Ranum, 1997RANUM, Orest. Os refúgios da intimidade. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3. Da Renascença ao século das Luzes. São Paulo, Cia. das Letras, 1997.) é uma possibilidade de refletir sobre as transformações suscitadas pela Grande Depressão na vida das pessoas, só que a partir de sujeitos e famílias reais. Ainda que raras, algumas cartas de então foram reunidas. Tendo isso em vista, este artigo tem como fonte duas séries epistolares, que permitem entender os dramas das famílias no campo e na cidade durante a Grande Depressão. A perspectiva do campo é possível a partir do estudo das cartas escritas por Caroline Henderson (2001)HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001., compiladas por Alvin O. Turner; a perspectiva dos grandes centros urbanos, é acionada a partir das cartas escritas por “pessoas comuns” ao presidente Roosevelt e outras figuras distintas de então, tais como a primeira-dama Eleanor Roosevelt e secretários de governo, compiladas pelo editor Robert S. McElvaine (2008)McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008..

Assim, este trabalho pensa sobre os significados das duas crises da década de 1930 nos EUA – econômica e ecológica – tomando como eixo a análise da pobreza, considerando nisso as diferenças de gênero, pois, como demonstrado a seguir, foi sobre as mulheres que o impacto do empobrecimento foi mais intenso e expressou de forma mais clara, como veremos em seus escritos, as idealizações que evidenciavam o receio da mudança e o esforço para se manter um ideal de ordem social e de gênero. Tal recorte evidencia ainda as idealizações sobre a família e a sociedade patriarcal no plano estatal com o New Deal, o que reitera que as políticas assistenciais do Estado norte-americano nessa época foram também uma das tecnologias de gênero institucionalizadas nos Estados Unidos de então operando para manter um local de poder gentrificado.

Para dar conta desse objetivo, este artigo está divido em três partes: na primeira, é feita uma consideração mais contextual sobre “A Década da Crise”, apresentando questões e especificidades que em muitos trabalhos ficam em segundo plano, visto o enfoque econômico que marca os estudos sobre a Grande Depressão. Em seguida e a luz de tal problemática, é feita primeiro uma reflexão sobre as cartas de autoria de homens enviadas ao presidente Roosevelt e sua equipe. Por fim, é feita uma consideração mais aprofundada a respeito das cartas enviadas por mulheres, que demonstram específicas matizações de gênero que o próprio Estado se propunha a reproduzir.

A década das crises

A Grande Depressão do século XX foi enfrentada não só pelos Estados Unidos, mas por todo o mundo devido à interligação dos mercados e a insurgente globalização da economia. Foi considerada, até a crise econômica do ano de 2008, como a maior ameaça contra a existência do capitalismo até então enfrentada pelo sistema econômico mundial. A despeito do superestimado otimismo econômico das décadas anteriores, o crash da terça-feira de 1929, dia 29 de outubro, paralisou o país mais produtivo do mundo após a Primeira Guerra Mundial (Greenberg, 2008GREENBERG, Brian et al. Social History of the United States, Vol. 4. ABC-CLIO, 2008.).

Nesse dia, todavia, o jornal The New York Times chamou a atenção na matéria de capa para a perda massiva nas ações em Wall Street, afirmando que os banqueiros continuavam otimistas e dispostos a ajudar a resolver aquele quadro que se formou.1 1 Disponível em: https://partners.nytimes.com/library/financial/102929crashfront.jpg. Acesso em: 14 ago. 2016. A cobertura do The Wall Street Journal do mesmo dia teve como manchete o recorde na queda do mercado de ações. Reiterou ainda o esforço e o interesse dos banqueiros para que as operações bancárias se normalizassem, não repetindo o mesmo comportamento da quinta-feira da semana anterior (dia 24 de outubro, quando a Bolsa de Valores começou a apresentar vertiginosa queda), na qual o índice que mede a confiabilidade do mercado, o Dow Jones & Company, caiu 13% e provocou um verdadeiro frenesi econômico.2 2 Disponível em: http://blogs.wsj.com/wsj125/2014/10/27/oct-28-29-1929-stock-crash. Acesso em: 14 ago. 2016. O jornal The Milwaukee Leader reportou de uma forma ainda mais dramática o ocorrido, dizendo que milhões de dólares foram perdidos no novo crash do mercado e que talvez fosse necessário punir o Senado americano por compactuar com as práticas lobistas.3 3 Disponível em: http://www.alamy.com/stock-photo-1929-milwaukee-journal-usa-front-page-reporting-the-wall-street-crash-72282388.html. Acesso em: 14 ago. 2016.

Em 19 de novembro de 1929, menos de um mês após a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, o presidente Hoover em um discurso oficial, manifestava seu temor:

Estamos lidando aqui com uma situação psicológica de um patamar considerável. É uma questão de medo. Tivemos a quebra da Bolsa de Valores - na qual um bom número de pessoas perdeu dinheiro, e muitas pessoas não poderiam se bancar, e ainda muitos desafortunados foram levados a essa situação - cujo efeito na mente americana cria um estado exagerado de alarme, porque nosso imaginário nacional naturalmente se lembra de ocasiões anteriores em que eventos como este tiveram uma influência considerável sobre a situação dos negócios, que, na interpretação final, é a empregabilidade [Tradução nossa]4 4 Discurso intitulado “A Economia e a Confiança Pública” do presidente Herbert Hoover, proferido em 19 de novembro de 1929. Esse é um discurso transcrito, e, assim como os demais discursos e pronunciamentos dos presidentes dos Estados Unidos da América, pode ser acessado no site do Miller Center, afiliado à Universidade da Virgínia e a um centro especializado nos estudos ligados a essa temática [http://millercenter.org/president/hoover/speeches/statement-on-the-economy - acesso em: 13 jul. 2016]. .

Como fica evidente a partir dessa breve passagem do primeiro discurso de Hoover após o colapso de Wall Street, sua reflexão é muito pesarosa: as perdas de dinheiro e bens como consequência da quebra do mercado de ações não se resumiam em poucas cifras, e não se restringiam a uma classe social específica. Toda a sociedade norte-americana sofria com aquela situação. Neste breve balanço, vemos que o presidente considerava exagerado o estado de alerta, como se aquela crise econômica fosse similar às crises ocorridas anteriormente.

Devido ao histórico de altos e baixos da economia norte-americana, que não durou muito tempo, o presidente supôs que aquela instabilidade da economia também se resolveria logo. Tratando-se da primeira crise do capitalismo em um mercado efetivamente global e interligado, não havia experiência histórica similar na época para Hoover e sua equipe preverem as dimensões e os rumos que a situação tomaria: a falência de bancos, fábricas e todos os medos e anseios de 1929, que só cresceram na década seguinte. Os desafortunados surgidos daquela semana de outubro foram o retrato sombrio da sociedade norte-americana até as vésperas da Segunda Guerra Mundial. A despeito do otimismo do governo de que a recessão seria breve, a Quebra da Bolsa não significou somente uma correção de valores inflacionados: o país e a economia global entraram em colapso, iniciando uma era geral de deflação.

Concomitantemente e correspondente a toda herança de lutas e resistências que precederam os anos 30, um insurgente conservadorismo político tornou-se a marca do Estado americano. Mesmo antes do New Deal e dos programas de assistência social, a literatura especializada concorda que o posicionamento do Estado foi bastante conservador e reacionário às transformações e manifestações da sociedade, usando da violência repressiva para conter toda forma de protesto e de insatisfação. A proposta de Hoover em sua campanha eleitoral em 1929 era a de romper com o passado progressista e instaurar uma “nova era”, porém, na prática, seu projeto político foi muito moderado. Sua gestão foi constantemente criticada, primeiro por ter durante muito tempo minimizado o tamanho das perdas e da crise, como se elas fossem algo breve; segundo, por seu posicionamento contrário à inflação monetária e às medidas federais de ajuda aos desempregados que, para Hoover, teriam graves efeitos “na tradição e no caráter norte-americanos” (Sellers; May; Mcmillen, 1990:325).

Tamanho conservadorismo na gestão de Hoover se refletiu na incapacidade de seu governo de manter um diálogo acerca dos problemas e tensões sociais, que teve seu ápice em 1932, quando mandou o exército reprimir uma das Marchas da Fome dos veteranos da Primeira Guerra Mundial que faziam duras críticas à omissão do Estado norte-americano em relação à sua situação. Esse enfrentamento sem precedência virou uma das maiores manifestações violentamente reprimidas pelo Estado contra trabalhadores e grupos civis, tornando-se uma carnificina com 3 mil mortos e centenas de feridos (Karnal, 2007KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.).

Tais posicionamentos violentos e excessivamente conservadores culminaram na impressão geral de insensibilidade do presidente, uma impopularidade que se reverteu na impossibilidade de sua reeleição nas eleições de 1932. Assim, quando o democrata Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidência em 1933, o clima geral demandava um posicionamento solícito e que inspirasse confiança. Era algo que Roosevelt soube muito bem usar como estratégia política em seu mandato, com a implementação das medidas emergenciais visando socorrer aqueles que haviam perdido o emprego nos centros urbanos, ou que passavam fome e todo tipo de necessidade na América rural castigada pela seca e pelas tempestades de areia, que também foram uma triste marca da época.

Antes desse cenário se consolidar, a sociedade estadunidense havia passado por mudanças rápidas no período entre o último quartel do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Foram transformações que acarretaram um progresso econômico e político, mas de uma forma extenuante em diferentes esferas. No âmbito político, econômico, ambiental e social, as pessoas tiveram de transformar suas vidas em vista das implicações exigidas por conta da modernização e industrialização.

Ainda assim, devido a essas mesmas remodelagens nas relações políticas, econômicas e de trabalho, tais experiências foram também positivas para essa sociedade. Principalmente para as mulheres e demais minorias políticas, a possibilidade da obtenção da autonomia econômica e a superação de algumas amarras sociais e patriarcais, o sonho do American dream pôde ser também o de liberdade e emancipação de alguns indivíduos (Duby; Perrot, 1991DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres - O século XX. Porto, Afrontamento, v. 1, 1991.).

No estabelecimento de indústrias e na formação da classe trabalhadora, a entrada das mulheres no mercado de trabalho fabril possibilitou uma remodelação dos papéis sociais de gênero envoltos em tensões. Na virada do século, até a crise econômica da década de 1930, as mulheres obtiveram conquistas e possibilidades de independência inéditas: ter um emprego permitiu que auxiliassem na renda familiar, seja nas classes menos favorecidas ou na classe média. Isso quando não se tornaram totalmente responsáveis pelo sustento da família ou delas mesmas, pois nessa conjuntura muitas jovens mulheres passaram também a viver sozinhas em grandes centros urbanos.

Para pensarmos como as mulheres e outras minorias políticas viveram os papeis sociais e sexuais de gênero no cenário de recessão econômica, o colapso ecológico e tudo mais que essas crises acarretaram, é preciso levar em conta os enfrentamentos políticos e os efeitos dessa crise na moralidade burguesa e liberal.

O problema decisivo que a desestruturação econômica iniciada em 1929 causou não tratou somente das fraturas impostas aos mercados de ações, aos preços de produtos agrícolas em nível mundial, tampouco à confiabilidade de investimento do capital estrangeiro nos Estados Unidos. A questão para qual devemos mover a atenção para pensar as questões abordadas neste trabalho é a que se preocupa em problematizar como toda essa desestruturação e rearranjo das formas de se levar a economia, a política e a diversidade sociocultural afetaram a vida das famílias e das pessoas – quais fissuras essas crises estruturais infligiram na segurança, na estabilidade, na saúde física e psicológica de homens, mulheres e crianças. Em especial, para a nossa análise, devemos investigar por qual via todas essas questões tocaram as relações de gênero.

É necessário também expandir o horizonte de reflexão, pois as sequelas da crise econômica de 1929 nas zonas urbanas dos Estados Unidos foram devastadoras. Muita de nossa memória histórica relacionada à Grande Depressão traz à tona, de súbito, as fotografias de pessoas vagando em busca de emprego ou em formação de fila para pegar a sopa dos pobres nas organizações filantrópicas e religiosas; ou, então, nos lembramos dos retratos de ex-combatentes e desempregados vendendo maçãs. Até 1932, aproximadamente 25% da população economicamente ativa do país (quinze milhões de norte-americanos) ficou desempregada. No mesmo período, a queda foi de 46% na produção industrial, cinco mil bancos faliram e o produto interno bruto (PIB) do país diminuiu um terço (Karnal, 2007KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.). Portanto, vemos como não é por acaso que o período entre 1929 e a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial é conhecido enquanto hard times – tempos difíceis.

Mesmo com números estatisticamente expressivos como os demonstrados acima, é difícil precisar a dimensão subjetiva que essa crise implica. Sobre o período, com certeza não é exagero afirmar que os mais pobres podiam literalmente morrer de fome sem a ajuda dos fundos de caridade e das agências do New Deal que forneciam sopa, agasalhos e pensões (Sellers; May; Mcmillen, 1990). As fotografias da miséria nos centros urbanos e nas áreas rurais, de ex-combatentes, as “Marchas da Fome”, as mobilizações da esquerda, da filantropia e de associações de mulheres, e, ainda, o surgimento das favelas, as hoovervilles (termo anedótico em relação ao legado do presidente Hoover), também são indícios do tamanho da miséria e das agruras que uma grande parte daquela sociedade vivenciou.

A Década de Crise dos Estados Unidos – como é reconhecida na historiografia estadunidense os anos 30 – teve um desdobramento ainda mais cruel na América rural, precisamente na região conhecida como as Grandes Planícies, mais ao centro sul do país. Ao mesmo tempo em que o os Estados Unidos colhiam as consequências da quebra da bolsa de Nova Iorque, o país sofreu a maior onda de calor e falta de chuvas registrada até então, que resultou no maior desastre ambiental da história do país. As tempestades de areia e terra que ocorreram com maior intensidade nesse período ficaram conhecidas como as Dust Bowl (“taças” ou “bacias de areia”) e são determinantes para se compreender esse cenário social, bem como de nos aproximarmos com maior cuidado da situação vivida então.

Uma forma de nos aproximarmos dessas experiências da pobreza rural e urbana – bem como de problematizarmos de forma mais adequada as questões de gênero intrínsecas a tal período sem recair numa narrativa estrutural ou economicista – é por meio da análise de algumas cartas dessa época, demonstrativas de implicações sensíveis do Estado sobre idealizações a respeito das relações de gênero. Por meio dos depoimentos que deixaram, homens e mulheres norte-americanos de diferentes idades, religiões e regiões do país ajudam a compreender a dimensão de tais eventos na esfera da vida privada, no campo e na cidade.

“Meu único pedido é o de que, por favor, esta correspondência seja mantida confidencial”

É muito difícil imaginar o fenômeno das Dust Bowl por meio de frações numéricas, pois é mesmo muito difícil imaginar como seriam tais tempestades de areia que moveram uma multidão a colocar suas famílias em carros e partir para viver uma promessa de emprego sazonal na Califórnia.

O depoimento de alguém que viveu essas situações é revelador da dimensão das repetidas catástrofes na vida das pessoas, sob a ótica e subjetividade feminina. Caroline Henderson viveu na região mais afetada pelas Dust Bowl durante a década de 1930, conhecida como “Cabo de Frigideira”, entre os estados do Texas, Novo México, Colorado, Kansas e Oklahoma, onde ficava sua propriedade. Essa região também era conhecida como “No Man’s Land” (Terra de Ninguém), devido à longa extensão das planícies e a sensação de um local ermo.

Caroline foi uma das pioneiras dessa região. Mudou-se para a área em 1907, ainda solteira e com o nome de Caroline Boas, incentivada pela propaganda do governo norte-americano de que o Oeste fosse habitado e cultivado. Lá conheceu e casou-se com Will Henderson, e juntos viveram os anos de apogeu da agricultura e da economia rural, anteriores às Dust Bowl e às flutuações da economia causadas pela interligação dos mercados mundiais. (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.).

Caroline sempre foi entusiasta da literatura e por anos escreveu para jornais e revistas, contando das belezas e prosperidade da região das Grandes Planícies. No ano de 2001, Alvin O. Turner publicou um trabalho de compilação de algumas de suas cartas. Como o editor explica na introdução da obra, além de reunir cartas inéditas guardadas pelos familiares de Henderson, diversas missivas suas já haviam sido publicadas em jornais ou outros livros menores. Contudo, na coletânea estudada aqui – intitulada “Letters from the Dust Bowl” –, foi a primeira vez que as cartas de Caroline Henderson foram reunidas e organizadas de forma a permitir analisar as mudanças de perspectiva da autora, bem como a experiência da escrita per se, decorrentes do acirramento da crise ecológica (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.).

No trecho da correspondência abaixo, intitulada “Dust to Eat” (Poeira para Comer) e datada de 26 de julho de 1935, Caroline já tinha 58 anos. Ela faz um exame da situação rural a Henry A. Wallace, o Secretário da Agricultura do governo Roosevelt, que a conheceu através de um texto seu publicado em uma revista. Após fazer um balanço sobre suas conquistas, sua paixão pela terra e a prosperidade que marcou sua vida por 28 anos, Caroline explica o que havia acontecido após a seca e as contínuas tempestades de areia. Ela diz:

[...] Agora nossa tortura física diária, confusão mental, o gradual desgaste da nossa coragem, parecem fazer com que essa esperança seja um sonho distante. Pois estamos na pior área das tempestades de areia, onde a expressão “poeira para comer” de William Vaughn não é mera expressão da linguagem como ele intencionou, mas a frase de uma realidade amarga, aumentando em gravidade com o passar dos dias. Qualquer tentativa de explicar o violento desconforto dessas tempestades seria em vão, exceto para aqueles que já as experimentaram [...] (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.:161, tradução nossa).

Caroline nos ajuda a tomar conhecimento de como eram os dias em que ocorriam as tempestades de areia:

Há dias em que por horas nós não conseguimos ver o moinho de vento que fica a 15 pés da porta da cozinha. Há dias em que por breves períodos não podemos distinguir as janelas das paredes por causa da sólida escuridão das tempestades. Somente em algum sonho infernal alguém poderia visualizar o escabroso terror da luz vermelha se espalhando pelo céu quando porções do Texas “estão no ar”. A poeira carregada pelos ventos, tão fina quanto a melhor farinha, penetra por tudo, aonde quer que o ar possa ir (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.:161, tradução nossa).

As tempestades ocorreram por anos, com grande ou pequena intensidade. Caroline alega ver “o Texas no ar” porque se tornou normal para as pessoas que vivenciavam as tempestades a percepção de que cada uma tinha uma cor diferente, correlata ao lugar onde os ventos arrastaram a terra. Caroline continua a expor sua narrativa nessa carta, explicando a Henry A. Wallace todas as transformações resultantes dessa situação: o imenso montante de lavouras perdidas; a quantidade de acres devastados; a escassez de água, que levou a vida de seus animais; o dia em que o poço secou; a pobreza que atingiu seus vizinhos menos abastados; e o gradativo abandono das terras. Faz, ainda, um apelo ao governo para enviar ajuda massivamente, porque o dinheiro dos benefícios não estava sendo suficiente para várias famílias.

É pelo tom de cartas como essas que a miséria e a calamidade das Dust Bowl adquirem realidade. O desespero que essa situação suscitou não foi apenas sentido nas perdas materiais. Para Alvin O. Turner, que editou estas cartas, fica evidente a partir das belas e pesarosas palavras de Caroline o quão duro foi esse golpe no “sonho americano”: os anos das Dust Bowl foram o derradeiro golpe na visão de progresso ininterrupto calcador da relação do homem com a terra (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.).

Devemos considerar esse testemunho de vida de Caroline como símbolo de todo um contingente de milhares de pessoas que, por vezes, sofreram ainda mais que a família de Caroline, mas que não tiveram chance de contar os seus terríveis sofrimentos e suas perdas. Em uma carta enviada a uma amiga em 1932, Caroline lamenta pela situação extrema a que chegaram seus vizinhos: eles estavam usando os velhos cavalos da família para cuidar da colheita, a fim de poupar os gastos com o trator. Segundo Caroline, qualquer agricultor entenderia a dimensão dessa escolha: exigir tanto assim dos cavalos, quando eles já tinham feito tanto durante toda sua vida e mereciam envelhecer em paz, era somente cabível em uma situação extrema (Henderson, 2001HENDERSON, Caroline Agnes. Letters from the Dust Bowl. University of Oklahoma Press, 2001.).

É a partir de revisões feitas com abordagens que dão conta de novas fontes e materiais históricos, como essas cartas, que o passado de dados estatísticos e multidões descaracterizadas adquire humanidade.

Cartas de “humildes servos”

O principal problema que se seguiu à Lei da Previdência Social de 1935 (uma das medidas do New Deal) foi o fato de que essa lei não atendia a todos os necessitados. Apesar da Depressão Econômica e da calamidade no campo ter se iniciado em 1929, as mães solteiras, por exemplo, passaram a ser incluídas no programa somente a partir de 1939: não no seguro social, mas sim na assistência do governo, conjuntamente com outras minorias sociais extremamente necessitadas (Gordon, 1995GORDON, Linda. Pitied but not entitled: single mother and the history of welfare, 1890 - 1935. Cambridge, Harvard University Press, 1995.).

Para o historiador Walter I. Trattner (2007), os princípios e programas básicos de qualquer sistema de segurança social refletem os valores da sociedade na qual esse sistema está inserido. Como será demonstrado a seguir, os valores da sociedade norte-americana, por ocasião da recessão econômica e das Dust Bowl, reforçaram idealizações conservadoras e reacionárias no entendimento de Trattner, temerosas das mudanças anunciadas por todas as organizações civis, feministas e de esquerda, que pleiteavam e anunciavam mudanças na família patriarcal, no papel das mulheres, no mercado de trabalho e nos direitos das minorias políticas.

Algo muito comum durante a gestão do presidente Franklin Delano Roosevelt, idealizador do New Deal, foi a troca epistolar entre a população e o presidente. Por seu perfil bastante paternalista, Roosevelt deu à população a impressão de que ele era um amigo muito próximo, um protetor em quem os norte-americanos podiam confiar – seu verdadeiro confidente (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.). Em geral, foram motivações econômicas, reais pedidos de auxílio que provocaram a escrita das cartas para o presidente: tendo em perspectiva que no ano de 1933 havia entre treze e quatorze milhões de desempregados, o significado emocional desses pedidos de auxílio é notável.

Em 1983, o historiador Robert S. McElvaine publicou pela primeira vez a coletânea de cartas sobre “os homens esquecidos” da Grande Depressão, nomeada “Down & Out in the Great Depression – letters from the forgotten man”. Em 2008, foi lançada uma nova edição, comemorativa, após 25 anos. No prefácio dessa nova edição, a que aqui utilizamos, McElvaine explica que seu interesse por tais cartas surgiu no verão de 1978, durante um seminário na Universidade de Califórnia, Berkeley. A obra é, portanto, uma seleção pessoal do autor, feita a partir dos manuscritos arquivados em órgãos do serviço oficial do governo estadunidense.5 5 Tais órgãos são: President’s Emergency Committee/Employment Central Files; President’ Organization for Unemployment Relief General Correspondence; Federal Emergency Relief Administration Central Files; e Civil Works Administration Administrative Correspondence Files, todos do Arquivo Nacional dos Estados Unidos, em Washington, D.C. Há ainda a Eleanor Roosevelt Papers, na Franklin D. Roosevelt Library, Hyde Park, Nova Iorque; Robert F.Wagner Papers, na Georgetown University Library, Washington, D.C.; e, por fim, Norman Thomas Papers, na Biblioteca Pública de Nova Iorque.

McElvaine (2008)McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008. chama a atenção para a importância dessas cartas, atentando ao fato de que as pequenas cidades e a América rural da década de 30 eram compostas por uma sociedade baseada nos valos americanos do individualismo, do trabalho duro e da autossuficiência. O orgulho e a crença nesses valores e suas implicações na forma como as pessoas se posicionaram a respeito da crise e da pobreza estão postas no teor das cartas, pois, como analisado a seguir, em tais missivas muitos cidadãos pediam por um emprego, não por assistência.

Em uma carta datada de 11 de dezembro de 1934, um homem do interior do Texas escreve ao presidente Roosevelt para explicar sua condição. Esse homem era dono de um pequeno pedaço de terra onde mantinha um pequeno rebanho de bois e algumas mulas. Visto o período difícil que passou durante o ano, ele hipotecou seus animais e agora pedia auxílio do presidente, porque a hipoteca estava prestes a ser executada. Esse homem, que assina a carta como um “humilde servo” do presidente, diz:

Eu fiz tudo que pude para pagar a hipoteca e falhei em tudo que eu tentei. Eu não produzi o suficiente na minha colheita desta vez, e o dono da hipoteca não permitiu que eu ficasse nem com um pouco dela para que eu me alimentasse enquanto eu estava colhendo, e agora o inverno está aqui, eu tenho esposa e três (3) crianças pequenas, não consegui sequer roupas suficientes para impedir que eles congelem. Minha casa pegou fogo três anos atrás e eu estou vivendo em um casebre, e estamos vivendo em uma condição de sofrimento. Minhas crianças estão falando do Papai Noel, e eu odeio ver o Natal chegando este ano porque eu sei que este será um dos piores natais que eles jamais terão testemunhado. Eu tentei fazer um acordo com o homem com quem estou em débito [o hipotecário], mas ele não aceita nada a não ser o dinheiro ou meu rebanho, e eu não posso emprestar dinheiro e preciso do meu rebanho, então estou lhe pedindo que me ajude de alguma forma, por favor (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:72, tradução nossa).

A ameaça da execução de hipotecas, do frio e a verdadeira necessidade extrema de auxílio para famílias inteiras esteve presente no interior e nas cidades dos Estados Unidos. No trecho da carta transcrita abaixo, temos mais um demonstrativo da situação de desamparo e desespero em que as pessoas chegaram durante a Grande Depressão. A carta foi destinada ao presidente Roosevelt, escrita em 23 de outubro de 1933, por um homem de St. Louis, Missouri. Ele diz:

Sou um pai de cinco boas crianças cristãs, e minha esposa veio sendo, e continua a ser, inválida a maior parte do tempo dos últimos doze anos; ela é afligida por seus membros muito doloridos, causados por úlceras varicosas. Eu sempre fui capaz de prover minha família razoavelmente bem, mas, nos últimos três anos, meu salário tem estado em constante declínio, mas eu continuo sendo grato por ainda ter uma posição. [...] O inverno está chegando, não temos carvão dentro de casa nem no estoque, e as crianças estão precisando de roupas quentes para ir à escola. [...] Não posso dar à minha esposa a atenção médica necessária que ela deveria ter. Existe alguma forma ou alguma pessoa até quem eu possa ir que possa me ajudar a passar por essa dificuldade. Eu nunca antes precisei pedir ajuda, mas eu devo e eu serei muito franco em dizer que eu apreciaria algum tipo de ajuda por um curto período de tempo, assim eu posso me recuperar um pouco. [...] Eu tenho 50 anos de idade e eu nunca perdi um dia desnecessário de trabalho, até ser forçado a fazer isso (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:56, tradução nossa).

Tal qual a carta anterior, nessa carta de autoria masculina ficam claros os medos e as angústias de um pai pobre durante a Grande Depressão, bem como a dimensão das dores que a recessão econômica e a crise ambiental infligiram na vida dos cidadãos. A partir dessa carta, conhecemos uma grande família, de ao menos sete membros e com um único provedor de sustento – justamente o pai, que escreve. Os dramas familiares mais evidentes – uma esposa enferma e cinco filhos em idade escolar – são os responsáveis pelo pedido de auxílio ao presidente Roosevelt, que seria bem aceito em qualquer forma. Porém, necessário frisar, a diminuição da renda familiar nos três anos anteriores, atada à impossibilidade de quitar as dívidas e conseguir mais dinheiro, é ainda motivo de constrangimento desse homem, o que o levou a solicitar ajuda do presidente.

Essa carta e tantas outras escritas por indivíduos das classes média e baixa têm uma característica em comum, a de solicitar confidencialidade: “My one request is, to please keep this correspondence confidential” (Meu único pedido é que, por favor, esta correspondência seja mantida confidencial), algo indicativo do que chamamos aqui de uma pobreza envergonhada: arraigada de valores debilitados, marcações de gênero expressas nas responsabilidades apresentadas, de uma violência e rancor fluidos e de uma tangível consternação com a necessidade de pedir ajuda.

Vemos, a partir do tom presente nas cartas escritas por homens, que essa vergonha diz muito da noção de masculinidade de então: não conseguir mais se sustentar e honrar os deveres creditadas ao seu papel social e de gênero representava a falência do modelo do provedor, uma marcada violência subjetiva. Pedir auxílio era assumir uma incapacidade, e reconhecê-la perante uma coletividade masculina – e perante o presidente da nação –, uma inegável consternação e humilhação.

Esse foi um verdadeiro estigma para a classe-média estadunidense da década de 30. Para McElvaine (2008)McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008., os pedidos de confidencialidade, o perfil dos que pediam ajuda e a heterogeneidade dos pleitos feitos são evidências dos diferentes conflitos e anseios que existiram a partir da experiência coletiva e nacional de recessão econômica.

Pensando nessa fluidez dos sentimentos e formas com as quais os sujeitos e as subjetividades de gênero viveram a pobreza, podemos afirmar que essa experiência da miséria em razão das crises econômica e ecológica não foi vivida da mesma forma pelas pessoas (Abelson, 2003ABELSON, Elaine S. “Women Who Have No Men to Work for Them”: Gender and Homelessness in the Great Depression - 1930-1934. Feminist Studies, 2003, pp.105-127 [https://www.jstor.org/stable/3178478?seq=1 - acesso em: 30 set. 2020].
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). Os pobres já viviam em condições extremamente difíceis antes mesmo do crash 1929, logo, suas perdas não eram tão expressivas (ainda que inegáveis e imensuráveis do ponto de vista subjetivo) quanto a de outros cidadãos norte-americanos (Divine, 1990DIVINE, Robert. América - Passado e Presente. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica, 1990.). Como é compreensível a partir do extrato supracitado de um homem que sempre foi trabalhador e conseguiu, por décadas, sustentar a si e aos seus, mas que a partir de dado momento não o pôde mais, os “novos pobres” – a classe média surgida do avanço econômico da Era Progressista e dos anos 20 – não precisaram somente sobreviver à pobreza. Foi necessário aprender a se posicionar psicologicamente frente a ela, solicitando e tendo que aceitar ajuda.

E esse esforço não era pouco, ou presumido. O orgulho e as grandes expectativas com que as classes médias viveram as décadas anteriores impediram, por vezes, que as pessoas pedissem auxílio da caridade, pública ou filantrópica. A historiografia da conta de que não era incomum que as famílias passassem fome para não ter que entrar na mesma fila da sopa na qual estavam aqueles de “segunda classe”, com quem não aceitavam ser comparados, muito menos partilhar da mesma situação (Divine, 1990DIVINE, Robert. América - Passado e Presente. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica, 1990.). Ao menos 29 pessoas morreram de fome na cidade de Nova Iorque em 1933 (Worster, 2004WORSTER, Donald. Dust Bowl: The Southern Plains in the 1930s. New York, Oxford University Press, 2004.), mesmo existindo possibilidade (que não podemos ter a ilusão de que bastava) de pedir auxílio e comida.

A partir disso, é possível afirmar que receber ajuda feria o mais profundo “norte-americanismo”, ia contra toda uma ética do self-mande man (algo como “o homem que se fez sozinho”). Feria ainda os estereótipos e a figura universal da masculinidade autossuficiente.

A demanda por auxílio estatal no campo não era tão diferente. Em 1933, organismos e departamentos do governo Roosevelt foram formados para gerir a crise rural.6 6 Para saber mais sobre tal questão e as implicações de gênero circunscritas à cultura visual e literária de então, ver Melo (2017). Apesar de existirem desde o ano de 1933, muitos indivíduos não aceitavam ou não lidavam bem com a ideia de ter que pedir auxílio para suas famílias que estavam passando fome. O posicionamento político do governo por vezes também não colaborava com esse entrave. No ano de 1935, em algumas cidades nas Planícies do Sul, os sobrenomes das famílias que recebiam auxílio eram publicados todos os meses nos jornais, haja vista a proibição de que o dinheiro recebido através dos fundos fosse usado para a compra de sorvetes, bebidas ou ingressos para o cinema (Burn; Duncan, 2012BURN, Ken. DUNCAN, Dayton. The Dust Bowl: An Illustrated History. Chronicle Books, 2012.).

Assim se configurava uma situação vexatória pública, na qual consternações e ansiedades podiam exteriorizar-se de forma violenta, por vezes, contra as minorias étnicas, raciais e de gênero daquela sociedade. É a partir desse quadro que os Depression Studies7 7 Depression Studies é o campo de estudos dedicado ao período da Grande Depressão, composto por especialistas de diversas áreas do conhecimento. Neste estudo foi privilegiado, quando possível, uma bibliografia de aporte teórico feminista e dedicado às problematizações de gênero que versam sobre tais questões. Como exemplo de pesquisadoras que propõem revisões à história social e econômica, podemos citar Lois Rita Helmbold, Ann Shola Orloff, Theda Skocpol e Linda Gordon, que têm seus trabalhos trazidos para reflexão aqui no momento oportuno. São também bastantes significativos os estudos da história cultural com comprometimento semelhante, como aqueles produzidos por William Stott, Dayton Duncan e Ken Burn, e John Raeburn, pelo esforço em matizar a narrativa preponderante da história social e econômica que marca tal período. , ao revisarem tal momento, apontam que as grandes transformações não ocorreram somente no campo político e econômico, mas também nas atitudes e comportamentos das pessoas.

São poucos os casos reconhecidos de indivíduos que cometeram suicídio, mas a classe média como um todo não era acostumada a lidar com catástrofes, e menos ainda com a sua própria pobreza. Até mesmo os que não tinham perdido tudo e continuavam ricos, de certa forma, temiam pelo futuro (Sellers; May; Mcmillen, 1990). Ocorreram 11 suicídios de investidores de Wall Street – isto é, 11 indivíduos que sabiam muito bem da dimensão das perdas. Tantas outras pessoas perderam de uma só vez os investimentos de uma vida (Karnal, 2007KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.). Em face à desesperança de anos de seca e tempestades de areia, nas zonas afetadas pelas Dust Bowl, foram registrados vários casos de famílias inteiras encontradas mortas, possivelmente por uma decisão do pai face à incapacidade de cuidar dos filhos (Worster, 2004WORSTER, Donald. Dust Bowl: The Southern Plains in the 1930s. New York, Oxford University Press, 2004.).

As cartas enviadas a Roosevelt e às demais pastas de seu governo exprimem esse estágio crescente de desespero e cólera. Abaixo, apresenta-se a carta datada de 04 de abril de 1934 e identificada de autoria de J. S. H. Foi endereçada a Bruce McClure, Secretário da Administração do Trabalho Civil. Nela, um indignado pai de família desabafa sobre ter perdido o emprego (conquista resultante já de sua participação em um programa de assistência social na cidade de Latrobe, Pensilvânia). Por conta disso, esse pai de seis filhos faz a McClure uma indagação extrema. Diz:

Você teria a gentileza de me aconselhar sobre qual seria a forma mais humana de me desfazer da minha família e de mim mesmo, porque neste ponto esta é a única coisa que me resta fazer. Não tenho casa, não tenho emprego, não tenho dinheiro. Nós não podemos seguir em frente desta maneira. Eles cortaram nosso registro d’água. Não temos higiene. Nós não podemos manter nossas crianças limpas, arrumadas como elas deveriam. Todos os seis estão na escola, mas em breve teremos que tirá-los se algo não for feito (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:159, tradução nossa).

É evidente neste relato o desespero e a miséria que afligem este homem e sua família, como ele reage de forma extrema face à sua falência enquanto provedor de sustento. Sendo alguém que anteriormente já teve que recorrer aos fundos de assistência, aceitando ajuda em forma de emprego, ao perder essa vaga por razões que na carta ele alega não ter culpa, a morte dos seus e a sua própria pareciam ser a derradeira saída para toda essa situação. Tais relatos deixam manifesto que expectativas e essencializações não agem, portanto, apenas no esforço de moldar e idealizar as mulheres, seus corpos, comportamentos e sentimentos. O mesmo esforço composto por violências simbólicas se faz na inscrição da masculinidade, arraigada dos valores, poderes e exigências de um determinado contexto, uma determinada cultura e período histórico.

“Por favor não quero contar meu nome, mas desejo que você possa passar essa lei de mandar o cheque para casa delas”

Homens e mulheres enviaram cartas ao presidente dos Estados Unidos durante a década de 30 demandando auxílio, mas dentro deste corpus epistolar, mulheres são muito mais presentes entre os que buscaram ajuda.8 8 Frisa-se que, conforme exposto anteriormente, o corpus epistolar possível foi selecionado e reunido por editores, não por esta pesquisadora. Nas cartas, os pedidos são diferentes: vemos pedidos de leite e alimentos para os filhos pequenos, roupas para enfrentar o frio para si próprios e para toda a família, ou solicitação de emprego para os maridos.

O que o teor das cartas de autoria feminina evidencia é uma diferença na solicitação, correlata às idealizações dos papeis sociais de gênero e às obrigações e responsabilidades tidas como tipicamente femininas. Para McElvaine (2008)McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008., havia um ideário conservador e reacionário na sociedade estadunidense, no qual o homem que pedisse por algo ou recorresse à caridade estava admitindo seu fracasso como provedor. Todavia, uma mulher que fizesse o mesmo desempenhava seu papel social esperado: pedir algo para cuidar de quem se ama, zelar e exercer um cuidado materno não seriam, jamais, razões para constrangimento. Era aceitável para as crianças, assim como era para as mulheres, pedirem auxílio e recorrer à caridade. Compreendemos, deste modo, que adentro dos valores e símbolos daquela sociedade, algo visto como uma demonstração de fragilidade para os homens era para uma mulher aceitável, até mesmo virtuoso. Essencializações e naturalizações sobre as mulheres e a feminilidade permaneceram estáveis e foram acionadas pela sociedade e o Estado, mesmo frente a todas as transformações extremas causadas pelas crises.

Ainda assim, não se pode duvidar da tristeza e das dores que as mulheres exprimem em seus textos epistolares. Nas correspondências de autoria feminina, é comum que o destinatário fosse a primeira-dama, Eleanor Roosevelt. Essas mulheres viam na esposa do presidente a chance de acolhimento e compreensão que um interlocutor masculino talvez não tivesse. Essa situação é evidente nas cartas que pedem por auxílio na obtenção de roupas para enfrentar o frio. Quem pedia já estava com peças muito puídas que colaboravam para um sentimento de vergonha e desamparo face ao círculo social no qual viviam.

O medo das mães pela vida que os filhos teriam no futuro é evidente nesses relatos. Em uma das cartas, uma mulher que responde por M. H. A. escreve a Eleanor Roosevelt em 14 de junho de 1934 com um pedido muito específico e imediato. Essa mulher diz ser muito simples e casada há oito anos. Com a idade de 31 anos, estava grávida de seu primeiro filho e morava apenas com o marido desempregado, razão pela qual ela era a única a prover sustento. Porém, por conta da gravidez, logo ela teria de sair do emprego, e não haveria como sustentar a si própria, o seu filho e o esposo. Ela pede essa ajuda por um período:

Um ano é tudo que eu peço e depois disso eu posso voltar a trabalhar e nós podemos trabalhar pela nossa própria salvação. Mas ter este bebê vindo para um lar cheio de preocupação e desespero, sem dinheiro para as coisas que são necessárias, isto não é justo. O bebê precisa e merece ter um começo de vida feliz (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:55, tradução nossa).

O lugar social e subjetivo da maternidade e a urgência dessa situação, especificamente na experiência feminina da pobreza, são evidentes na carta: “But I am not asking for myself alone. It is as a potential mother and as one woman to another” (Eu não estou pedindo apenas por mim. É enquanto uma mãe iminente, um pedido de uma mulher para outra) (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:54).

As transformações e os anseios gerados entre as mulheres não se limitaram tão somente às casadas. Concomitantemente ao aprofundamento da crise, o desgaste implicado a essa situação de vulnerabilidade econômica refletiu-se ainda mais na vida familiar com o aumento de casos de homens, provedores de sustento, que abandonaram suas famílias por causa da falta de emprego, ou que devolviam suas esposas para seus pais por não conseguirem sustentá-las (Sellers; May; Mcmillen, 1990). Também a única forma de sobreviver sob um teto tornou-se, muitas vezes, dividi-lo com outras famílias e parentes, o que gerava tensões e conflitos (Karnal, 2007KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.).

As taxas de fecundidade e casamento também sofreram uma drástica diminuição durante toda a Grande Depressão – tanto no campo quanto nas cidades, fenômeno que ocorria pela primeira vez desde o início do século XIX. Outro indício dos estereótipos de gênero para além das situações de abandono, da “devolução” e do teor dos pedidos das cartas de auxílio é o fato de serem as mulheres as primeiras a perderem seus empregos, não somente porque se vivia uma recessão, mas porque elas passaram a ser substituídas por homens, que tinham prioridade de acesso às poucas vagas existentes (Karnal, 2007KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Editora Contexto, 2007.).

Como aponta a pesquisadora feminista Lois Rita Helmbold, as mulheres tiveram de assumir muitas vezes quase a total responsabilidade pela renda familiar, sustentando seus filhos, sobrinhos e familiares de mais idade. No caso das mulheres negras, essa situação é ainda mais extrema. Assim como as mulheres perderam o emprego para homens nesse período, as vagas existentes que aquela sociedade destinava à população feminina negra, como de empregadas e faxineiras, passaram a ser aceitas por mulheres brancas (Helmbold, 1987).

O próprio Estado colaborou para que estas situações de vulnerabilidade extrema ocorressem. Outra carta sinaliza melhor a tensão de gênero que circunda toda esta conjuntura de crise, rural e urbana, tratando do dinheiro do auxílio recebido pela política do New Deal. Uma mãe de dois filhos, em de 27 de novembro de 1935, pediu ao presidente Roosevelt que ele intercedesse na situação pela qual sua família passava – deixando claro ser aquela uma situação vivida por várias mulheres. Segundo essa mãe – que se identifica como “uma amiga” –, seu marido, assim como tantos outros, recebe o cheque do benefício e gasta todo o dinheiro em bebida, dando a ela muito menos que o necessário para que fosse possível manter as crianças e a si própria.

Por causa disso, essa mãe solicita que Roosevelt envie o cheque diretamente para a casa das mulheres, assim elas poderiam pegar o dinheiro antes de seus maridos e garantir que ele fosse bem utilizado.

Vocês não podiam fazer com que os cheques deles [dos homens] fossem enviados para a casa delas [as mulheres] e a gente podia viver muito melhor você pode ajudar nós mulheres neste sentido. Por favor, não quero contar meu nome, mas desejo que você possa passar essa lei de mandar o cheque para casa delas [sic] (McElvaine, 2008McELVAINE, Robert S. (ed.). Down & Out in the Great Depression: Letters from the Forgotten Man. Twenty-fifth Anniversary Edition. University of North Carolina Press, 2008.:127, tradução nossa).

É notório como aqui temos outra razão para o pedido de sigilo. Em primeiro ponto, torna-se claro que o Estado, mesmo na sua política de assistência, não considerou os problemas da estrutura patriarcal da sociedade estadunidense, o que, nessa situação de crise e fragmentação, tornou flagrante as relações de poder que se mantiveram estáticas e extremamente violentas contra as mulheres, crianças e demais minorias. Em segundo ponto, diferentemente dos homens que redigiram cartas no mesmo período – cartas caracterizadas pela vergonha que sentiam de sua condição –, essa mulher pediu silêncio e não se identificou, pois temia, como explica no decorrer da epístola, a represália da violência de seu marido, caso ele soubesse desse apelo, interpretável como delação.

Uma parcela específica da bibliografia a respeito da Grande Depressão nos Estados Unidos reitera que as mulheres foram “abandonadas” por seus maridos durante a Depressão Econômica, fazendo até com que isso seja uma peça determinante para montar o quebra-cabeça dessa época, conjuntamente com as filas de pão e sopa. Contudo, estudos sensíveis à problemática dos estudos do gênero e feministas demonstram, por sua vez, que os papeis sociais de gênero nos Estados Unidos não sofreram tensões e transformações somente nesse momento. Há décadas, movimentos feministas e de pleito pelos direitos das mulheres vinham questionando os paradigmas patriarcais de então.9 9 A esse respeito, ver Melo (2021).

Uma historiografia mais atual sobre o período da Grande Depressão, ao considerar a categoria gênero e a atuação política das mulheres, partilha dessa inquietação. Algo muito sintomático das tensões pulsantes sobre as relações de gênero na década de 30 se torna patente a partir do estudo de Elaine Abelson: a existência de um grupo significativo de mulheres no começo do século XX que não morava com suas famílias, por escolha ou imposição. Essas mulheres viviam sozinhas nos centros urbanos, uma situação permitida justamente pelo desenvolvimento econômico de toda a década anterior que gerou “empregos femininos”. O desemprego e a preferência de homens para preencher as vagas existentes fizeram com que muitas delas perdessem o emprego; passavam a integrar, então, mais um segmento dos “novos pobres” surgidos pela crise, e, sem uma família para qual voltar, iam morar nos bairros pobres.

Em consonância com o que verificamos conforme o quadro de experiências da pobreza que traçamos antes, Abelson evidencia a permanência de naturalizações de papeis sociais e estereótipos ligados às mulheres mesmo em uma evidente sociedade transformada, não apenas pela crise, mas também pela modernização das décadas anteriores. Devido ao imaginado papel de dependência familiar e doméstica das mulheres, aliado ao imaginário de que a participação no mercado de trabalho fosse exclusivamente uma experiência masculina, até 1933 os abrigos para sem-teto recebiam apenas homens nos Estados Unidos (Abelson, 2003ABELSON, Elaine S. “Women Who Have No Men to Work for Them”: Gender and Homelessness in the Great Depression - 1930-1934. Feminist Studies, 2003, pp.105-127 [https://www.jstor.org/stable/3178478?seq=1 - acesso em: 30 set. 2020].
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). Não eram amparadas pelo Estado as mulheres que viveram a experiência de extrema pobreza, de não ter um teto e ter que viver na rua.

Assim, todas aquelas que não tinham uma casa – porque perderam o emprego, ou porque foram “abandonadas” por seus companheiros e ficaram sós, ou porque não tinham uma família para qual voltar por razões extraeconômicas – não fizeram parte do plano assistencialista por um longo período, um indício de que o pensamento político que norteou os esforços públicos de combate à miséria foi reprodutor de segregações de gênero. Portanto, em face e devido a essa situação extrema evidenciadora de que as relações familiares e os papéis sociais de gênero estavam em crise e se transformando, os estereótipos de gênero de certa forma se mantiveram intactos e idealizados.

Sem dúvidas, é necessário citar que a manutenção desses estereótipos se deve também à reação à atuação dos movimentos civis que muito incomodaram (e muito conquistaram) para aquela sociedade. Todas as lutas e ganhos dos pleitos feministas do começo do século XX tiveram impacto ainda sobre a edificação de representações e comportamentos adequados das mulheres e dos homens, da família e da maternidade.

Muito em conta dos esforços de ativistas e defensoras dos direitos das mulheres, os anos 1920 viram as reflexões acerca da sexualidade e de seu papel social adentrarem o espaço das discussões políticas. Embora o tema dos direitos das mulheres tenha se tornado parte da linguagem política, não conseguiu desfazer, dentro do horizonte de expectativas para as mulheres, o casamento e a sexualidade heterossexuais, bem como a maternidade. Ademais, com esses esforços de instauração de modelos, qualquer comportamento dissidente (como não ser mãe por escolha, a homossexualidade feminina, ou a possibilidade de que as mulheres preferissem seguir uma profissão a estabelecer de uma família) tornou-se ultrapassado, quando não mesmo um estigma (Cobble; Gordon; Henry, 2014).

Vindo a ser paulatinamente um assunto corrente e até público, haja vista a difusão intelectual (acadêmica e leiga) das reflexões de Sigmund Freud nas primeiras décadas do século XX, essa época também viu legitimar a heterossexualidade como sinônimo de saúde e componente central da própria existência. Compartilhamos da perspectiva de Dorothy Sue Cobbe de que com isso também foram instaurados novos comportamentos-padrão, fazendo com que as mulheres que não tivessem um comportamento sexual ativo por escolha própria fossem estigmatizadas, bem como eram patologizados todas e todos que não vivessem sua sexualidade no modelo heterossexual, ou na satisfação plena do instinto materno (Cobble; Gordon; Henry, 2014).

Assim sendo, não é de se estranhar os modelos e as idealizações de família, feminilidade e masculinidade que compuseram as políticas públicas do New Deal na década de 30, bem como todo o imaginário sobre as mulheres, (re)produzidos nas mídias audiovisuais e impressas, bem como nas cartas aqui trazidas.

À luz do que foi exposto, é bem verdade ainda que o sistema de Bem-Estar Social do período não foi projetado para atender a todos com prerrogativas de gênero: mulheres solteiras ou que não condiziam com um ideário da feminilidade materna não eram muitas vezes contempladas pelo sistema (Trattner, 2007). É por isso que Linda Gordon afirma que o Estado norte-americano endossou estereótipos de gênero que se projetavam na vida social através dos beneficiários das leis de auxílio. Apesar da situação crítica e emergencial, o projeto social do governo foi conservador, erigido a partir de valores sociais idealizados por uma ala conservadora e reacionária da sociedade norte-americana, relativa principalmente aos modelos de família e maternidade. Ancorou-se na reafirmação da mulher como mãe e responsável pelos cuidados do espaço doméstico, e do homem como o responsável pela manutenção financeira da família (Gordon, 1995), uma prerrogativa essencialmente paradoxal num período de tantas mudanças. Foi um pensamento político fundado na complementaridade: mesmo quando essa política pública garantiu auxílio para os homens, o valor do “salário” era baseado em uma visão de família adequada e considerava quanto um marido precisaria ganhar para sustentar com dignidade uma esposa desempregada e filhos (Gordon, 1995GORDON, Linda. Pitied but not entitled: single mother and the history of welfare, 1890 - 1935. Cambridge, Harvard University Press, 1995.).

Esse preceito explicita os princípios de uma ordem social desejada: se o auxílio não fosse pensado basicamente para a manutenção da ordem familiar patriarcal e reconhecesse que mulheres eram também chefes das famílias e não só os homens, isso poderia acarretar déficits na autoridade masculina, que possivelmente gerariam reflexos em todo o corpo social (Gordon, 1995GORDON, Linda. Pitied but not entitled: single mother and the history of welfare, 1890 - 1935. Cambridge, Harvard University Press, 1995.). Além disto, vemos que essa prerrogativa, mesmo que masculinista (entendida aqui enquanto algo elaborado de e para homens), podia muito bem não contemplar todos os homens, pois eles igualmente estavam circunscritos no ideal de família como pais – os que não exerciam a paternidade ficavam à margem dos beneficiados.

O pensamento que guiou o sistema estatal de assistência frente a Crise de 1929 se esforçou para manter e estabilizar as tensões familiares diante dessa situação dramática da mudança social e econômica, que suscitava, por sua vez, mudanças nos comportamentos e desejos das mulheres e, portanto, promovia alterações nos papéis de gênero. Esses anseios e transformações, para Gordon, ao fim levariam as mulheres para o mercado de trabalho, minando as bases da submissão feminina e, por isso, deveriam ser combatidos (Gordon, 1995).

Apesar da dimensão de atuação New Deal ser expressiva, as medidas não conseguiram dar conta de sanar as crises econômica e ambiental. Ao fim da década, em 1938, ao menos 10 milhões de pessoas continuavam desempregadas (Sellers; May; Mcmillen, 1990). A situação das famílias que haviam migrado para o oeste por conta das Dust Bowl, e que continuavam morrendo de fome nos acampamentos e beiras de estradas, estava longe de ser solucionada no final da década.

Uma análise que considere gênero enquanto uma categoria histórica (Scott, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2, 1995 [https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667 - acesso em: 30 set. 2020].
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) entende que tanto o sexo quanto o gênero se constroem nas dimensões sociais e políticas, com um caráter reiterado “através de processos culturais, pelos quais se define o que é – ou não – natural” (Louro, 2013LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado – pedagogias da sexualidade. Ed. Autêntica, 2013.:10), razão pela qual os corpos ganham sentido social e a inscrição dos gêneros em tais corpos é sempre feita dentro, com e por marcas dessa cultura e suas redes de poder (Louro, 2013LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado – pedagogias da sexualidade. Ed. Autêntica, 2013.).

As cartas aqui analisadas demonstram não só a complexidade da vida diária, das súplicas e das desigualdades sociais de então: são vestígios para nossa análise crítica e sensível a respeito da complexidade da pobreza, bem como das históricas idealizações sobre os gêneros e sobre a inscrição dos gêneros nos corpos na contemporaneidade. As políticas públicas devem ser interpretadas como peças e tecnologias de gênero (Laurettis, 1987), nas quais se veem as marcas de um desejo estruturante de normatização social. As cartas são espaços privilegiados para se problematizarem uma época, as relações de poder e as questões subjetivas que a isso se enredam.

Considerações finais

Conclui-se, com esta linha de análise, que a política intervencionista de Roosevelt transpôs e defendeu estereótipos de família, gênero e raça, legitimando até mesmo um estatuto de cidadania ao impor prerrogativas que incidiam no comportamento dos homens e de mulheres que seriam dignos de ajuda. A partir das epístolas enviadas ao presidente e à primeira-dama temos a marca da dor e da dificuldade de milhares de pessoas comuns. Temos também uma outra possibilidade de leitura sobre o período, a partir de uma perspectiva diversa, “vista de baixo”.

Na esteira dessa discussão, não podemos deixar de ponderar que este esforço de delimitar o papel das mulheres e da feminilidade adequada fez parte de um intento contrário às diversas lutas e pleitos feministas que se organizavam desde fins do século XIX. Nesse panorama reacionário e de apreensão, houve um esforço de silenciamento político a partir do modelo ideal de família e dos papeis sociais de gênero.

Reafirmamos que a perspectiva de gênero que cruza o pensamento político dessa década foi reacionária às mudanças que se anunciavam, para homens e para mulheres. Isso fica evidente ao se constatar que essas situações indesejáveis, que deveriam ser evitadas pelo governo em um plano político, foram exatamente o que aconteceu durante o transcorrer do século XX, mas por outras razões, que giram em torno da luta das mulheres e dos feminismos pelo direito destas sobre seus próprios corpos, suas próprias vontades e seus próprios sonhos, por exemplo.

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  • WORSTER, Donald. Dust Bowl: The Southern Plains in the 1930s. New York, Oxford University Press, 2004.
  • 1
  • 2
  • 3
  • 4
    Discurso intitulado “A Economia e a Confiança Pública” do presidente Herbert Hoover, proferido em 19 de novembro de 1929. Esse é um discurso transcrito, e, assim como os demais discursos e pronunciamentos dos presidentes dos Estados Unidos da América, pode ser acessado no site do Miller Center, afiliado à Universidade da Virgínia e a um centro especializado nos estudos ligados a essa temática [http://millercenter.org/president/hoover/speeches/statement-on-the-economy - acesso em: 13 jul. 2016].
  • 5
    Tais órgãos são: President’s Emergency Committee/Employment Central Files; President’ Organization for Unemployment Relief General Correspondence; Federal Emergency Relief Administration Central Files; e Civil Works Administration Administrative Correspondence Files, todos do Arquivo Nacional dos Estados Unidos, em Washington, D.C. Há ainda a Eleanor Roosevelt Papers, na Franklin D. Roosevelt Library, Hyde Park, Nova Iorque; Robert F.Wagner Papers, na Georgetown University Library, Washington, D.C.; e, por fim, Norman Thomas Papers, na Biblioteca Pública de Nova Iorque.
  • 6
    Para saber mais sobre tal questão e as implicações de gênero circunscritas à cultura visual e literária de então, ver Melo (2017)MELO, Flavia da Rosa. Mulheres da Grande Depressão: a itinerância das representações femininas e maternas no romance e filme As Vinhas da Ira - Estados Unidos (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 2017..
  • 7
    Depression Studies é o campo de estudos dedicado ao período da Grande Depressão, composto por especialistas de diversas áreas do conhecimento. Neste estudo foi privilegiado, quando possível, uma bibliografia de aporte teórico feminista e dedicado às problematizações de gênero que versam sobre tais questões. Como exemplo de pesquisadoras que propõem revisões à história social e econômica, podemos citar Lois Rita Helmbold, Ann Shola Orloff, Theda Skocpol e Linda Gordon, que têm seus trabalhos trazidos para reflexão aqui no momento oportuno. São também bastantes significativos os estudos da história cultural com comprometimento semelhante, como aqueles produzidos por William Stott, Dayton Duncan e Ken Burn, e John Raeburn, pelo esforço em matizar a narrativa preponderante da história social e econômica que marca tal período.
  • 8
    Frisa-se que, conforme exposto anteriormente, o corpus epistolar possível foi selecionado e reunido por editores, não por esta pesquisadora.
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    A esse respeito, ver Melo (2021)MELO, Flavia da Rosa. “Nós queremos pão e rosas”: feminismos e ativismos de mulheres junto aos descontentes da América (Estados Unidos, 1900–1929). Cadernos de Gênero e Tecnologia, v. 14, n. 44, 2021, pp.434-450..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2020
  • Aceito
    12 Jan 2023
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