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O exílio das mascaradas em A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath

The Exile of the Masked in The Bell Jar by Sylvia Plath

Resumo

Este artigo oferece uma análise do romance A redoma de vidro, de Sylvia Plath, com foco nos processos de subjetivação da protagonista, Esther Greenwood. Entendendo que Esther inicia sua jornada identificando-se com o lugar de estrangeira, são elucidados os modos pelos quais sua experiência varia para a de exílio. Explora-se como a economia política do desejo condiciona as mulheres a uma alienação de si mesma e como esta remete ao exílio. As ideias de estrangeiro e exílio são elaboradas em diálogo com o conceito esquizoanalítico de território. Por fim, são expostas as estratégias pelas quais Plath cria um imaginário que funciona por parâmetros diferentes dos impostos pelo desejo masculino.

A redoma de vidro; Processos de subjetivação; Crítica feminista; Desejo; Território

Abstract

This article analyzes Sylvia Plath’s novel The Bell Jar, focusing on protagonist Esther Greenwood’s subjectivation processes. Understanding that Esther begins her journey identifying herself with the place of a foreigner, it illustrates how her experience shifts to one of exile. It explores how the political economy of desire conditions women to self-alienation and how this leads them to exile. The concepts of foreigner and exile are elaborated in dialogue with a schizoanalytic concept of territory. Finally, the article shows how Plath creates an imaginary that works with different parameters than those imposed by male desire.

The Bell Jar; Subjectivation processes; Feminist criticism; Desire; Territory

Introdução

A redoma de vidro é um romance que retrata o estado de confusão identitária que as mulheres enfrentavam na década de 1950. Nele, Sylvia Plath realiza uma exploração atenta da atmosfera de artificialidade que se forma ao redor de um regime de enclausuramento que oferece uma ilusória promessa de liberdade. No que se segue, analisamos como a protagonista, Esther Greenwood, vivencia um processo de enlouquecimento que é apresentado a partir da inseparabilidade entre a vida psíquica e os eventos sociais. Esta, na verdade, é uma característica importante da obra Plath: a noção de que o psiquismo nunca está relegado a uma interioridade privada do sujeito, os acontecimentos históricos e políticos estão sempre imbricados às fantasias íntimas e pessoais.

Esther é uma jovem adulta que está no processo de se formar em uma faculdade de inglês e adentrar no mercado de trabalho. Porém, ela começa a se deparar com um estado de confusão ao se perceber frente às contradições e ambivalências no que diz respeito às expectativas que recaem sobre si por sua condição de mulher. Por exemplo, apesar do seu desejo de autonomia, existe uma demanda externa de que ela realize um casamento que garanta sua segurança financeira. Tal possibilidade de destino encontra resistência na imagem de Jota Cê, sua chefe na revista Ladies’ Day, que encarna um modelo de profissionalismo regido por uma aura de austeridade e frigidez. A ideia de casamento que atravessa a figura da sua chefe parece contraditória com a ideologia de subserviência e renúncia que circula nos discursos da época. Desse modo, o sucesso da vida profissional de Jota Cê é apresentado como um indicativo de um casamento fracassado.

Sendo assolada por representações femininas nas quais deveria se encaixar caso desejasse conquistar algum reconhecimento social, dentro ou fora da lógica familista, Esther se encontra em um estado liminar em que não se é nada ao mesmo tempo que é afirmado que ela poderia ser tudo, sendo seu fracasso uma responsabilidade inteiramente sua. A partir de Suely Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011., elucidamos como a impressão de mobilidade social era uma condição comum às mulheres do contexto em que o romance se passa, sendo tal estado necessário para o funcionamento da macropolítica dos anos dourados.

Apesar das representações femininas apresentadas durante o romance não serem livres de incoerências, em um primeiro momento, Esther tenta se adequar a elas, como que para manter uma consistência com essas imagens quase míticas. Por meio de uma crítica feminista, analisamos como essas representações estereotipadas da feminilidade funcionam como máscaras que as mulheres são encorajadas a vestir como condição para assumirem uma suposta normalidade.

Como Esther está constantemente falhando em vestir as máscaras da feminilidade, os afetos que atravessam o seu corpo dizem sempre respeito à inadequação, à incapacidade e à insuficiência. Condensando esses três termos, temos a ideia do estrangeiro com a qual a protagonista se identifica com muita facilidade. Inicialmente a identificação com o estrangeiro garante um lugar de potência à protagonista, que resiste e se fortifica no passeio por outros mundos possíveis. Porém, em um dado momento, Esther percebe que tais mundos não são possíveis para ela, que permanece interditada nas fronteiras de territórios impenetráveis. Por meio das proposições de Julia Kristeva (1986KRISTEVA, Julia. The Kristeva Reader. Nova Iorque, Columbia University Press, 1986. - 1994) e de Luce Irigaray (2017)IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017., elucidamos por que a sensação de ser uma estrangeira em um ambiente hostil se torna muito rapidamente um processo de exílio. Além disso, fazemos uso do conceito esquizoanalítico de território para refletir como as imagens do estrangeiro e do exilado se consolidam através dos constantes deslocamentos, que são tanto físicos quanto subjetivos.

A partir do questionamento do que então seria possível para Esther, contrastamos a reprodução de identidades com os processos de subjetivação, entendendo que enquanto aquela compreende uma modelização, estes exigem uma instância poética de composição de si. Realizamos uma análise a partir de alguns contrapontos à teoria psicanalítica, referenciando-nos nas propostas de Suely Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011., que doam uma outra compreensão à vida afetiva a que as mulheres estavam submetidas no contexto do romance.

Ao fim, partimos do conceito de estratégia histérica proposta por Bronfen (1996)BRONFEN, Elizabeth. Over her dead body: death, femininity and the aesthetic. New York, Manchester University Press, 1996. e procuramos elucidar como o processo de enlouquecimento de Esther coincide com suas tentativas de desfazer os limites dos modelos de feminilidade. Longe de evitar a loucura, Esther se entrega à possibilidade de uma desestabilização absoluta que, apesar de trágica, permite que ela se torne uma dissidente de uma ordem de hierarquias de existência.

Um passeio por entre as bordas: da estrangeira à exilada

Ambientado na década de 1950, nos Estados Unidos, A redoma de vidro inicia-se na Ladies’ Day, uma famosa revista feminina situada em Nova Iorque que oferece um concorrido estágio para um grupo de universitárias. As estudantes selecionadas são instaladas em um hotel exclusivo para mulheres cujas hóspedes são descritas como garotas “com pais ricos que queriam garantir que as filhas viveriam em um lugar onde os homens não pudessem alcançá-las e fazê-las de bobas” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:10). A classe social aparece como sinalizador da liberdade que cada uma das personagens pode exercer sobre suas vidas e, como Esther se entende como pobre (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.), sua condição contrasta com a das colegas da revista.

Nesse primeiro momento, Esther é apresentada penetrando em espaços onde se sente deslocada e lidando com a impressão de que ela não deveria estar ali. Esther se observa como um corpo estranho: ela não é tão bonita como as outras, não tem tanto dinheiro, não sabe se comportar à mesa e assim por diante. A despeito do seu desejo em investir em uma carreira profissional, a sensação de inadequação produz uma ansiedade que faz com que a protagonista vacile entre suas expectativas profissionais e a demanda externa por um casamento que garanta dinheiro e segurança.

O caso de Esther está intimamente relacionado com o desconforto enfrentado pelos que David Smail chama de “fugitivos de classe” (2015:43), pessoas que tentam se aventurar para fora da sua classe adquirindo a ideologia e o poder econômico das classes mais ricas. Segundo o teórico, essa experiência é como estar disfarçado em um país hostil:

A sensação de exposição é realmente central para a experiência de alguém nesta situação: isolado, separado, cercado por um ambiente hostil, você se vê de repente sem conexões, sem estabilidade, sem nada para mantê-lo em pé ou no lugar; uma irrealidade vertiginosa e nauseante toma conta de você; ameaçado por uma completa perda de identidade, uma sensação de ser uma fraude completa; você não tem o direito algum de estar aqui, agora, habitando este corpo, vestindo-se desta maneira; você é um nada, e 'nada' é literalmente o que você sente que está prestes a se tornar (Smail, 2015SMAIL, David. The origins of unhappiness: a new understanding of personal distress. Londres, Karnac Books Ltd, 2015.:46, tradução nossa).1 1 No original: “The sense of exposure is indeed central to the experience of someone in this situation: isolated, cut off, surrounded by hostile space, you are suddenly without connections, without stability, with nothing to hold you upright or in place; a dizzying, sickening unreality takes possession of you; you are threatened by a complete loss of identity, a sense of utter fraudulence; you have no right to be here, now, inhabiting this body, dressed in this way; you are a nothing, and 'nothing' is quite literally what you feel you are about to become”.

Esse torpor misturado à impressão de inadequação e insignificância fundam a percepção de ser um impostor. A partir da leitura de Smail, Mark Fisher expõe que o poder de classe produz o sentimento de inferioridade ontológica que caracteriza um tipo de depressão deliberadamente cultivada pelo sistema capitalista (Fisher, 2020:141). É a partir de tal condição que compreendemos a sensação de entorpecimento e vazio que Esther encontra ao perceber que suas pequenas vitórias universitárias não possuem significado algum “do lado de fora do mármore liso e dos vidros da fachada da Madison Avenue” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:8). Esther se sente defasada em relação às outras mulheres e, por isso, procura adquirir os signos que produzem a distinção entre elas. É tentando se apropriar dessa gramática social que a protagonista acaba diante do paradoxo de se sentir “burra em comprar todas aquelas roupas caras e desconfortáveis” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:8), ao mesmo tempo que percebe que seus esforços são inúteis, pois ela segue ocupando o espaço liminar daqueles que são interditados de adentrar um dado território.

Com o fim do estágio, Esther volta para sua casa no subúrbio de Boston e, logo na sua chegada, recebe a notícia de que sua matrícula em uma concorrida oficina de ficção havia sido negada. Se a estadia em Nova Iorque já havia iniciado um descompasso em Esther, a notícia de rejeição mobiliza um verdadeiro colapso. Isso porque, além da protagonista ter sua escrita rejeitada, a oficina era a sua chance de permanecer longe do ambiente doméstico durante o verão. De volta ao subúrbio, Esther se percebe presa ao ambiente familista e sente-se sufocada por imagens de donas de casa, grávidas e bebês. Dessa maneira, o início da grande gama de fantasias suicidas aparece como uma resposta às sensações de rejeição e de não ser boa o bastante para fugir da compulsoriedade do casamento e da maternidade.

Durante a narrativa, é possível observar que Esther está sempre em deslocamento, seja ele físico ou subjetivo. No início do romance, a característica cosmopolita da cidade de Nova Iorque e a constante referência aos estrangeiros criam uma sensação de desterritorialização. Para pensarmos em um território que não se limita a um espaço físico, mas que também se estende sobre os processos subjetivos, guiamo-nos pelas propostas de Félix Guattari e Suely Rolnik:

Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto ao sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar, cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais (Guattari; Rolnik, 2011GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 2011.:388).

Com isso, entendemos que a ideia de território corresponde a uma organização que acontece em qualquer campo da vida, podendo ser relativo tanto a espaços sociais, estéticos, subjetivos, quanto a tantos outros. A desterritorialização diz respeito aos movimentos de abertura que desfazem as delimitações dos sistemas disponíveis. Nesse sentido, a própria Esther muitas vezes parece uma estrangeira no território feminino das mulheres ricas e belas de Nova Iorque. Enquanto a protagonista circula entre pessoas de nacionalidades diferentes com uma sensação de novidade, as outras hóspedes do hotel queixam-se de estarem cansadas de viagens e de pessoas de fora do território nacional: “Conversei com uma delas, que me disse que estava cansada dos iates, das viagens de avião, do esqui na Suíça durante o Natal e dos homens no Brasil” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:10). Esse contraste de reações aparece como um atestado perverso de que Esther está atrasada em relação ao progresso das outras mulheres. Porém, ao mesmo tempo que Esther é um corpo estranho, ela procura adaptar-se, mimetizando a normalidade do ambiente que, para além da superfície de roupas caras e desconfortáveis, também diz respeito a um estado subjetivo de constante cansaço e indiferença.

Diante da falta de consistência entre a sua experiência e o papel que procura representar, a identificação de Esther com os estrangeiros parece inevitável. É importante notar que o contexto social do romance é assolado por uma xenofobia sustentada por narrativas de espionagem resultantes da retórica da Guerra Fria2 2 Durante todo o romance, a protagonista encontra-se obcecada com a história de Julius e Ethel Rosenberg, um casal de judeus condenado à pena de morte por espionagem. Plath constrói um paralelo entre a morte por eletrocussão do casal e a eletroconvulsoterapia a qual Esther é submetida, relacionando ambos à tortura e ao sacrifício. Desta forma, Plath cruza a história da vida psíquica de Esther com a referência histórica da Guerra Fria, revelando uma instância de inseparabilidade entre ambas. . Portanto, a presença do estrangeiro é associada à ideia de um possível inimigo habitando dentro do corpo norte-americano. Reconhecer o estrangeiro em si mesma é, também, o vislumbre de uma identificação com o inimigo do Estado. Não é à toa que a protagonista expressa uma grande admiração por uma tradutora russa que, além de não usar maquiagem, domina e traduz vários idiomas. Mas, apesar desse encantamento, Esther se sente deslocada também entre os russos:

Pela primeira vez na minha vida, sentada no coração à prova de som do prédio da ONU, entre Constantin, que jogava tênis tão bem quanto fazia traduções simultâneas, e a garota russa que sabia várias expressões idiomáticas, me senti totalmente inadequada. Na verdade o problema é que eu sempre fora inadequada, só não tinha pensado nisso ainda (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:88).

Esther reconhece o estrangeiro em si mesma, mas permanece órfã de um povo: é a própria ideia de origem que lhe parece inadequada. Essa percepção é apresentada por Julia Kristeva (1994)KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. como um sintoma psicossocial observado a partir da modernidade, quando há uma modificação na condição dos estrangeiros, principalmente por causa da integração econômica e política em escala planetária. Nesse contexto, a presença do estrangeiro deixa de ser uma questão de acolhida ou repulsa e passa a ser uma condição existencial, dizendo respeito à “coabitação desses estrangeiros que todos nós reconhecemos ser” (Kristeva, 1994KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.:10).

O estrangeiro de Kristeva é um adepto da solidão que, por meio de um impulso errante, efetua um afastamento indiferente dos vínculos e das comunidades. Diferenciando-se da experiência radical do exílio, no estrangeiro ainda persiste uma felicidade cabisbaixa:

A felicidade parece transportá-lo, apesar de tudo, porque alguma coisa foi definitivamente ultrapassada: é uma felicidade do desenraizamento, do nomadismo, o espaço de um infinito prometido. Contudo, felicidade cabisbaixa, de uma discrição medrosa, apesar de sua intrusão penetrante, pois o estrangeiro continua a se sentir ameaçado pelo território de outrora, tragado pela lembrança de uma felicidade ou de um desastre – sempre excessivos (Kristeva, 1994KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.:12).

Identificar-se com o estrangeiro é uma estratégia de resistência para Esther, que, apesar do evidente sofrimento, consegue fortificar-se pela possibilidade de desenraizamento e nomadismo. Seguindo Neusa Santos Souza (1998)SOUZA, Neusa Santos. O estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, Caterina (org.). O estrangeiro. São Paulo, Escuta/FAPESP, 1998, pp.155-163., podemos afirmar que quando as expectativas familistas que recaem sobre Esther se tornam terroríficas, é preciso criar o estrangeiro. Em A redoma de vidro, o estrangeiro aparece não como uma figura de repúdio, mas como uma tentativa de migrar para uma região sem fronteiras e, com isso, conviver com outros sentidos, com outras significações, passear por outros mundos possíveis (Souza, 1998SOUZA, Neusa Santos. O estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, Caterina (org.). O estrangeiro. São Paulo, Escuta/FAPESP, 1998, pp.155-163.).

Porém, a segurança desse passeio é fragilizada quando a identificação com o estrangeiro se radicaliza, transformando-se em outra coisa. Em determinado momento, a protagonista começa a fazer uso de metáforas de estrangeiridades para descrever suas impressões mais abstratas. Assim, assistir à investida sexual entre duas pessoas “é como ver Paris de um trem expresso que avança em direção contrária” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:24) e o ar incompreensível de uma colega remete a “uma vaga expressão eslava” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:36). Essas metáforas de distanciamentos servem para que Esther relativize a si própria e aos demais por meio de um processo puramente imaginativo, visto que ela nunca foi à Paris e nem conheceu uma eslava, desde o início do livro ela comunica que é uma interiorana que nunca havia saído da sua cidade.

No decorrer da narrativa, o estranhamento quase turístico de Esther começa a se aproximar da experiência de exílio. Se o estrangeiro é o estranho a quem é permitido um certo nível de circulação, o exilado é aquele que é condenado a fantasmar as bordas do território. A sensação de estar sempre em um “fora” acaba por desestabilizar a identidade de Esther a ponto de haver uma dificuldade em reconhecer-se naqueles que deveriam ser os seus reflexos. Isso pode ser notado tanto na aversão às mulheres que encarnam uma espécie de modelo a ser seguido quanto nas cenas em que Esther, ao ver seu reflexo no espelho, enxerga-se como uma “chinesa enorme”3 3 “Entrei no elevador e apertei o botão do meu andar. As portas fecharam-se como uma sanfona muda. Então meus ouvidos fizeram um barulho estranho e percebi uma chinesa enorme de olhos borrados me encarando com ar idiota. Era eu, claro. Fiquei chocada com o quanto estava enrugada e esgotada” (Plath, 2014:25). ou uma “índia doente”4 4 “O rosto no espelho parecia o de uma índia doente” (Plath, 2014:127). . Nesses momentos, é possível ter a impressão de que Esther perde a referência de um “eu” em prol de uma alteridade radical, uma desterritorialização absoluta de si mesma.

A condição subjetiva de Esther tem uma grande expressão na sua fisicalidade. Seus deslocamentos por espaços públicos se acentuam quando ela recebe a notícia de que não poderá participar da oficina de escrita ficcional e, consequentemente, terá que passar as férias no ambiente doméstico. Nesse contexto, Esther impõe o movimento e mantém passeios fora do subúrbio. O “estar fora de si” é acompanhado, portanto, de um corpo que resiste às fronteiras do território a que foi designado. Ela narra idas a praças, a um cemitério, a uma praia que divide limites com um presídio etc. Locais esses também limítrofes.

Podemos dizer que a protagonista inicia sua jornada como uma estrangeira, mas, através dos seus altos e baixos, sua experiência acaba por variar da nômade para a da exilada. Luce Irigaray (2017)IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017. entende que a condição de exilada está intrinsecamente ligada à alienação que as mulheres sofrem do seu próprio desejo. A teórica afirma que, ao tentar se compreender dentro de uma ordem falocêntrica, as mulheres são “exiladas delas próprias, e sem continuidade-contiguidade possível com seus primeiros desejos-prazeres, importadas de uma outra economia na qual elas absolutamente não se situam” (Irigaray, 2017IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017.:153).

Marcando uma diferença em relação ao estrangeiro, em Powers of horror (1982) Kristeva relaciona o exílio à abjeção. Segundo a teórica, a função do exílio é eleger um corpo como dejeto no intuito de instaurar um interdito de circulação sobre um determinado espaço. A abjeção é todo contato com tal proscrito, de modo que o abjeto é aquele que deve ser não apenas expulso, mas também repudiado. É o repúdio que possibilita a definição da fronteira entre o dentro e o fora do corpo social. O exilado vaga pelas fronteiras desse corpo emitindo uma risada que coloca e desloca a abjeção:

Aquele pelo qual o abjeto existe é, portanto, um desiludido que posiciona (a si próprio), separa (a si próprio), situa (a si próprio) e, consequentemente, desvia-se ao invés de encontrar sua direção, seu desejo, seu pertencimento ou sua recusa. De certo modo situacionista, e não sem risadas, já que rir é uma maneira de colocar ou deslocar a abjeção (Kristeva, 1982KRISTEVA, Julia. Powers of horror. Nova Iorque, Columbia University Press, 1982.:8, tradução nossa)5 5 No original: “The one by whom the abject exists is thus a deject who places (himself), separates (himself), situates (himself), and therefore strays instead of getting his bearing, desiring, belonging, or refusing. Situationist in a sense, and not without laughter - since laughing is a way of placing or displacing abjection”. .

É por meio de tal riso delirante que a protagonista passeia entre a condição de estrangeira e exilada. Esse riso é expresso pela estetização do excesso por meio do qual Esther articula uma autoironia cortante que ridiculariza não só as suas experiências subjetivas, mas também as representações identitárias que ela deveria assumir para pertencer a um “dentro”. O riso desconcertante do seu discurso autoirônico coloca e desloca o abjeto que, como veremos, Esther faz questão de encarnar, tal qual o exilado absurdista de Kristeva.

Mas, podemos nos perguntar, quais condições são oferecidas para que Esther deixe seu exílio e constitua, ela própria, um território existencial outro? Enquanto mulher, a protagonista precisa lidar com uma localidade social definida por um conjunto de características delimitadoras da feminilidade. O que é destacado na narrativa é a percepção de que existe uma contradição na existência das mulheres: ao mesmo tempo que há uma ilusória abertura de possibilidades de destino, há também uma expectativa que o desejo feminino convirja para uma mesma promessa de felicidade.

Por trás das máscaras, apenas partículas afetivas enlouquecidas

A promessa de felicidade feita às mulheres depende da disponibilidade que têm para vestir a máscara do ideal de feminilidade. Essa máscara dá uma conformação aos movimentos do desejo feminino por meio de uma representação que, segundo a retórica social, é de livre e espontânea vontade das mulheres.

A noção de máscara é bastante comum nas produções que teorizam sobre o feminino. Para a psicanalista Joan Riviere (2005)RIVIERE, Joan. A feminilidade como máscara. Psyche, v. 9, n. 16, São Paulo, 2005, pp.13-24., por exemplo, a feminilidade pode ser entendida como uma máscara usada pelas mulheres para evitar a ansiedade social relacionada ao gênero. Por meio dela, as mulheres encenariam um papel em busca de reconhecimento e segurança em um mundo dominado por valores masculinos.

Partindo da crítica à psicanálise, Irigaray afirma que “Nessa mascarada feminilidade, a mulher se perde, justamente à medida que a encena” (Irigaray, 2017:96). Com isso, a teórica entende que o papel requerido pela máscara da feminilidade tem suas fronteiras dadas por valores falocêntricos. Ao procurar encarnar tal representação, a mulher acaba por perder as referências do seu próprio desejo, que passam a ser localizadas sempre no outro. Desse modo, enquanto a psicanálise defende que a mascarada corresponde ao desejo da mulher, Irigaray (2017)IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017. esclarece que as mulheres vestem máscaras no intuito de participar do desejo do homem, mas à custa de renunciar aos seus próprios. Segundo a teórica, é por meio desse movimento que a mulher se aliena do seu desejo, tornando-se uma exilada de si mesma.

A ideia das máscaras parece levantar, de maneira muito natural, a questão do que há por trás delas. Pretendemos evitar a noção psicanalítica que acoplaria a máscara a um desejo que remete à falta. Tal premissa nos levaria a crer que por trás da máscara há apenas uma falta essencial que as mulheres tentam suprir pelo investimento de novas máscaras. Mas também desejamos nos afastar da ideia de um suposto rosto verdadeiro que apareceria ao suspender das máscaras. Acompanhamos a concepção de Suely Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011., segundo a qual o uso de máscaras é uma etapa necessária da efetuação dos processos de subjetivação:

por trás da máscara não há rosto algum, um suposto rosto verdadeiro, autêntico, originário – em suma, um rosto real que estaria oculto, seja por trauma ou recalque (versão psicologizante), seja por ideologia ou falsa consciência (versão sociologizante) ou, simplesmente, por ignorância (versão pedagogizante) (Rolnik, 2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011.:36).

Para entendermos a concepção de subjetividade que Rolnik dispõe, remeteremos ao arsenal teórico de Guattari, que é um dos intercessores que atravessam a construção que a autora propõe. Em Caosmose (2012), Guattari lança uma definição provisória para o conceito de subjetividade: “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva” (Guattari, 2012GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 2012.:19). Ou seja, a subjetividade é uma condição (e não um fim) de um processo de territorialização. Tal condição reside em uma função poética que permite a composição de novos territórios. Levando em consideração que, em alguns contextos sociais, essa subjetividade se individualiza ou, em outros, faz-se coletiva, sua formação sempre ocorre pelo posicionamento em relação às alteridades ou, como coloca Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011., pelos encontros com estas. Outra característica importante a ser destacada é que esse território existencial nunca está livre de fragilizações, de modo que a subjetividade está sempre se desterritorializando e, na melhor das hipóteses, em processo de constituir novos territórios. Nesse sentido, o sujeito nunca é uma versão acabada de si mesmo, mas está sempre em processo de subjetivação.

Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011. propõe uma perspectiva dos processos de subjetivação que, apesar de não estar diretamente ligada às interpretações de Riviere e Irigaray, também se serve da noção das máscaras. A teórica afirma que nos encontros com alteridades é gerada uma quantidade de intensidades afetivas que demandam exteriorizações e, para que isso ocorra, há a necessidade de produção de uma matéria de expressão6 6 Tal expressão não se limita aos domínios semiológicos e semióticos, mas extrapola por domínios extralinguísticos, não humanos, biológicos, tecnológicos etc., ou seja, atravessa um sem número de matérias heterogêneas (Guattari, 2012:36). que possa servir como uma espécie de máscara. A composição de máscaras seria, então, o efeito de uma série de agenciamentos por meio dos quais as intensidades afetivas ganhariam corpo e possibilidade de expressão. O desejo, aqui, possui um conceito completamente diferente daquele utilizado por Riviere e Irigaray. Ele é definido por três movimentos: a) o movimento das intensidades afetivas que buscam novas máscaras; b) o movimento dos territórios que se organizam; e c) os possíveis destinos desses territórios. Segundo Rolnik:

O desejo, nesta concepção, consiste no movimento de afetos e de simulação desses afetos em certas máscaras, movimentos gerados no encontro dos corpos. Nesse percurso, as matérias de expressão que constituem a máscara ficam como que enfeitiçadas; sob encantamento. [...] O desejo aqui, consiste também num movimento contínuo de desencantamento, no qual, ao surgirem novos afetos, efeito de novos encontros, certas máscaras tornam-se obsoletas; movimentos de quebra de feitiço; afetos que já não existem e máscaras que já perderam o sentido (Rolnik, 2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011.:36).

Em Rolnik (2011)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011., o conceito de máscaras ganha uma interpretação menos monolítica. Seus usos podem funcionar tanto de modo ativo quanto reativo, gerando revoluções ou aprisionamentos. Levando em consideração que nenhum processo de subjetivação ocorre de modo separado dos processos sociais, a teórica chama atenção para as formas com que o sistema capitalista interfere nos movimentos do desejo no intuito de gerar uma produção de subjetividades que correspondam às exigências do seu funcionamento. O capitalismo pressupõe, necessariamente, uma economia de mercado dos processos de subjetivação.

A teórica explica que a década de 1950 foi marcada pela sensação de que as mulheres poderiam se descolar das máscaras às quais estavam predestinadas pela ideologia dos anos anteriores. Com isso, havia uma impressão de mobilidade, de ser possível desejar e investir em outros territórios existenciais. Perversamente, essa impressão era necessária para o funcionamento da economia dos anos dourados. Pensando na produção de subjetividade como uma economia de mercado, Rolnik (2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011.:91) explica que

essa mobilidade total está sendo incrementada para que a força possa ser convertida em suporte de valor a partir de equivalentes gerais e, com isso, circular livremente no mercado seguindo o ritmo acelerado de investimentos e desinvestimentos de capital. [...] os indivíduos têm que ser despersonalizados e anônimos para poderem se mover, sozinhos ou em grupo, como “remessas de mercadoria”.

A ilusão de poder circular pelos espaços públicos e assumir novos papéis sociais criava, nas mulheres, uma reprodução de comportamentos necessária para o funcionamento da macropolítica. O que estava menos perceptível na micropolítica do desejo era que, por meio da desterritorialização permitida pela desaderência das máscaras, criava-se um mercado de valor existencial. Segundo tal lógica, a pessoa é alienada da possibilidade de constituir sua própria expressão por se encontrar sob jugo de uma hierarquia de modelos de subjetividades com valor de mercado. Em outras palavras: cai-se a máscara, as partículas intensivas são liberadas como que enlouquecidas em busca de novas matérias de expressão, surge uma multiplicidade de novos territórios existenciais que são organizados hierarquicamente, de modo que o desejo comece a responder a uma economia de mercado. Dessa forma, as pessoas que querem pertencer e ser reconhecidas no âmbito social sempre se encontram em um estado angustiado por subir na pirâmide da hierarquia de existência.

Levando em conta essa cartografia do desejo, entendemos que, durante todo o romance, a protagonista se sente desorientada frente à enorme quantidade de simulações que seu desejo pode assumir. Em uma cena icônica, Esther visualiza uma figueira que funciona como imagem das suas possibilidades de vida. Aqui, é-nos revelada a condição que ela enfrenta em definir seu desejo:

Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto.

Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com maridos e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar.

Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:88-89).

Esther tem a impressão de que ela pode ser uma poeta, uma editora, uma romancista, uma dona de casa, uma mãe, uma campeã olímpica de remo (mesmo nunca havendo remado). Seu desejo é múltiplo e aponta para todos os lados. Porém, é expresso que ela não vai chegar a lugar nenhum por causa da sua paralisia diante da dúvida de qual desses frutos colher. Todos os seus fracassos serão da sua própria responsabilidade, resultantes da sua incapacidade de escolher um caminho, de escolher uma máscara7 7 Guattari fala sobre como o processo de culpabilização existe como função da subjetividade no capitalismo: “A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística. A raiz das tecnologias capitalísticas de culpabilização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como ‘quem é você?’, ‘você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?’, ‘o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?’, ‘a que corresponde sua fala?’, ‘que etiqueta poderia classificar você?’ E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo” (Guattari; Rolnik, 2011:49). . Por causa da suposta legitimidade de tantas máscaras, Esther encontra-se no limite da desterritorialização, o que a coloca em um estado de fragilidade, de carência e de lamúria de reivindicação.

Podemos entender que, ao tentar se desgrudar dessas máscaras em busca de um rosto original e verdadeiro, Esther acaba por liberar partículas afetivas enlouquecidas, encontrando por trás das máscaras apenas “um corpo que cai no vazio, inerte” (Rolnik, 2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011.:100). A sensação de desterritorialização radical, o desequilíbrio e o consequente corpo que cai são movimentos necessários para que a política econômica dos anos dourados se mantenha. É por meio dela, e não por causa de uma falta constitutiva, que é administrada a eterna experiência de insatisfação que mobiliza as mulheres ao consumo de novas máscaras.

Estratégias de dissidência

Para além de um relato sobre o colapso mental, A redoma de vidro é uma narrativa sobre o colapso das identidades femininas. Ao mesmo tempo que discursos tentam capturar Esther (e que ela se deixa capturar), o seu corpo passa por uma ordem que não é a do poder, mas a da contaminação de afetos. Em um movimento de desordenamento, a protagonista começa a desfazer os limites das suas máscaras e implodir as fronteiras do seu próprio corpo. Em uma possível interpretação, podemos dizer que Esther procura dobrar as linhas de poder que traçam as delimitações do seu Eu.

A protagonista não se identifica com o Outro que é a mulher do discurso masculino. Mas também não se identifica com o discurso masculino em si mesmo. Na posição de estrangeira das imagens sociais, Esther apenas deseja estar no lugar de observadora do freak show que é o mundo exposto à sua frente: “Eu gostava de assistir às pessoas vivendo situações extremas. Se houvesse um acidente rodoviário, uma briga de rua ou um feto num pote de laboratório, eu parava e olhava tão intensamente que nunca mais esquecia daquilo” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:20). Esse distanciamento próprio do estrangeiro também oferece à protagonista uma certa segurança:

A indiferença é a carapaça do estrangeiro: insensível, distante, no fundo ele parece fora do alcance das agressões que, contudo, sente com a vulnerabilidade de uma medusa. É que o afastamento onde o mantemos corresponde àquele em que ele próprio se aloja, recuando até o centro indolor daquilo que chamamos de alma, essa humildade que, definitivamente, constitui-se de uma nítida brutalidade (Kristeva, 1994KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.:15).

O afastamento que Esther mantém oferece segurança à sua condição vulnerável. Não é à toa que, no início do livro, a redoma de vidro que a aprisiona é descrita como um lugar muito calmo e vazio, tal qual o olho de um tornado:

Acontece que eu não estava conduzindo nada, nem a mim mesma. Eu só pulava do meu hotel para o trabalho e para as festas, e das festas para o hotel e então de volta ao trabalho, como um bonde entorpecido. Imagino que eu deveria estar entusiasmada com a maioria das outras garotas, mas eu não conseguia me comover com nada. (Me sentia muito calma e muito vazia, do jeito que o olho de um tornado deve se sentir, movendo-se pacatamente em meio ao turbilhão que o rodeia.) (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:9)

O isolamento estagnado da redoma permite uma anestesia da brutalidade das relações humanas quando desinvestidas da sedução e da conveniência. Entretanto, o romance demonstra que essa anestesia pode ser fatal, o que fica expresso nas tentativas de suicídio da personagem.

Inicialmente, a segurança do afastamento permite que Esther simule as máscaras da feminilidade que estão em alta no mercado existencial. Porém, as mulheres que serviriam de modelo para isso são descritas por Esther a partir do excesso, de modo que elas parecem estar sempre beirando o ridículo. Elizabeth Bronfen (1996)BRONFEN, Elizabeth. Over her dead body: death, femininity and the aesthetic. New York, Manchester University Press, 1996. afirma que Plath se utiliza da “estratégia histérica” para subverter a ordem simbólica da perspectiva masculina a partir do despendido:

O problema é que, se o olhar predominante que separa o sujeito do objeto de observação é inerentemente masculino, é possível haver um olhar feminino? Em resposta a este impasse, a escrita histérica estabelece convenções como a masculinidade do olhar e a apatia do corpo feminino, apenas para subverter e perturbar a firmeza desses suportes na cultura da autorrepresentação (Bronfen, 1996BRONFEN, Elizabeth. Over her dead body: death, femininity and the aesthetic. New York, Manchester University Press, 1996.:406, tradução nossa).8 8 No original: “The problem is that if the mastering gaze which separates subject from object of gaze is inherently masculine, can there be a feminine gaze? In response to this impasse hysterical writing installs conventions such as the masculinity of the gaze, the deadness of the feminine body, only to subvert and disturb the security of these stakes in cultural self-representation.”

Partindo das frequentes imagens da cultura em que a mulher é representada como objeto para o qual o homem, verdadeiro sujeito da ação, direciona o olhar, Bronfen reconhece que algumas autoras instituem uma estratégia de subversão a partir da emulação do corpo feminino apático, com a diferença da adição de uma ambivalência entre a cumplicidade e a contestação do olhar masculino. Segundo Bronfen (1996), Esther assume uma aparente cumplicidade com a perspectiva masculina, chegando a performar a posição feminina de ausência e de duplo, mas, ao fazer isso com um exagero que beira o absurdo, compõe uma sátira sobre os limites da representação da feminilidade. É por meio da estetização do excesso que Plath faz Esther transbordar suas fronteiras e se tornar uma dissidente do sistema social, tal como descreve Kristeva:

Mas, através dos esforços do pensamento na linguagem ou precisamente através dos excessos das linguagens cuja própria abundância é o único sinal de vida, pode-se tentar provocar múltiplas sublocações do indescritível, do irrepresentável, do vazio. Esta é a verdadeira vanguarda da dissidência (Kristeva, 1986KRISTEVA, Julia. The Kristeva Reader. Nova Iorque, Columbia University Press, 1986.:300, tradução nossa)9 9 No original: “But through the efforts of thought in language, or precisely through the excesses of the languages whose very multitude is the only sign of life, one can attempt to bring about multiple sublations of the unnameable, the unrepresentable, the void. This is the real cutting edge of dissidence.” .

A hostilidade que Esther expressa por causa da sensação de estar “sem chão” resulta em uma expulsão do território de reconhecimento que ela havia cobiçado. Mas isso não acontece de modo inusitado. Ao perceber a artificialidade das máscaras da feminilidade, Esther deliberadamente se torna uma dissidente do mercado existencial. Assumindo esse lugar, a protagonista se declara inimiga da estrutura social que a encapsula em uma redoma.

Assim como a paródia de gênero (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.) ou o jogo com o mimetismo (Irigaray, 2017IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017.), a repetição histérica da posição feminina tece uma crítica à artificialidade do gênero. Como consequência, Esther acaba por traçar sua jornada por um caminho limítrofe, assumindo o risco da loucura e da abjeção. Afinal, apesar da fronteira definir o que deve ser proibido e esquecido, habitá-la oferece a compensação da possibilidade da diferença e do desejo múltiplo, como afirma Anzaldúa: “Vivendo nas fronteiras e nas margens, mantendo intacta a identidade múltipla e mutante, é como tentar nadar em um novo elemento, um elemento alienígena” (Anzaldúa, 1987:n.p., tradução nossa)10 10 No original: “Living on borders and in margins, keeping intact one's shifting and multiple identity and integrity, is like trying to swim in a new element, an 'alien' element”. . Na fronteira, o elemento alienígena se torna familiar, apesar de nunca cômodo.

É possível afirmar que a jornada de Esther acontece por meio de falhas nos rituais sociais que constituem o sentido de uma mística feminina (Friedan, 2020FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Rio de Janeiro, Rosa dos tempos, 2020.). Se a experiência de enlouquecimento da personagem é responsável pelo seu exílio em um asilo psiquiátrico, ela também serve para que Plath crie um imaginário que funciona por parâmetros diferentes daqueles impostos pelo desejo masculino. Com o divórcio da lógica racional, Esther pode extrapolar o que está dado e criar metáforas que relativizam a si e aos demais, como aquela do trem que avança em direção contrária ou da amiga com expressão eslava. A partir de uma exploração imaginativa dos deslocamentos, Esther causa uma série de desterritorializações para fazer imperar todo um oceano de partículas afetivas alienígenas.

Considerações finais

A inadequação que Esther Greenwood experiencia pode ser associada à noção de ser uma estrangeira. Porém, se em um primeiro momento tal posicionamento parece oferecer uma segurança à personagem, sua radicalização desemboca em um processo de enlouquecimento. O início do colapso mental da protagonista é evidenciado nos momentos em que Esther associa o estrangeirismo não apenas à sua localidade social, mas também às suas fantasias mais íntimas. Com isso, torna-se perceptível que seu distanciamento não é apenas da realidade que a cerca, mas imbrica o seu próprio desejo.

A sensação de ser estrangeira se converte rapidamente na de ser uma exilada. Tal mudança coincide com o fato de Esther ser rejeitada pelo famoso escritor da oficina de ficção. Tanto a rejeição quanto o fato de precisar permanecer no território doméstico compõem o pano de fundo para o seu enlouquecimento. Porém, longe de fugir da possibilidade da loucura, Esther abraça a desterritorialização absoluta que se torna possível à medida em que a personagem procura se desgrudar das máscaras do ideal de feminilidade, liberando, assim, suas partículas afetivas enlouquecidas.

No decorrer da narrativa, é possível notar uma crítica ao ideal de feminilidade que ronda a vida das mulheres, muitas vezes moldando seus desejos. É que a própria macropolítica do contexto narrado demanda que as mulheres assumam lugares em uma hierarquia de existência que responde a um valor de mercado. Se no início do livro temos uma personagem que parece implicada em trabalhar para escalar a pirâmide existencial, a partir de um movimento aberrante, Esther se torna uma dissidente da ordem social ao perceber tanto a artificialidade da representação que precisa assumir quanto o distanciamento do seu desejo, que, longe de ser direcionado a um objeto, aponta para todos os lados possíveis.

Referências bibliográficas

  • ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco, Aunt Lute Books, 1987.
  • BRONFEN, Elizabeth. Over her dead body: death, femininity and the aesthetic. New York, Manchester University Press, 1996.
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.
  • FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo, Autonomia Literária, 2020.
  • FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Rio de Janeiro, Rosa dos tempos, 2020.
  • GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 2012.
  • GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 2011.
  • IRIGARAY, Luce. Este sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2017.
  • KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
  • KRISTEVA, Julia. The Kristeva Reader. Nova Iorque, Columbia University Press, 1986.
  • KRISTEVA, Julia. Powers of horror. Nova Iorque, Columbia University Press, 1982.
  • PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.
  • RIVIERE, Joan. A feminilidade como máscara. Psyche, v. 9, n. 16, São Paulo, 2005, pp.13-24.
  • ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
  • SMAIL, David. The origins of unhappiness: a new understanding of personal distress. Londres, Karnac Books Ltd, 2015.
  • SOUZA, Neusa Santos. O estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, Caterina (org.). O estrangeiro. São Paulo, Escuta/FAPESP, 1998, pp.155-163.
  • 1
    No original: “The sense of exposure is indeed central to the experience of someone in this situation: isolated, cut off, surrounded by hostile space, you are suddenly without connections, without stability, with nothing to hold you upright or in place; a dizzying, sickening unreality takes possession of you; you are threatened by a complete loss of identity, a sense of utter fraudulence; you have no right to be here, now, inhabiting this body, dressed in this way; you are a nothing, and 'nothing' is quite literally what you feel you are about to become”.
  • 2
    Durante todo o romance, a protagonista encontra-se obcecada com a história de Julius e Ethel Rosenberg, um casal de judeus condenado à pena de morte por espionagem. Plath constrói um paralelo entre a morte por eletrocussão do casal e a eletroconvulsoterapia a qual Esther é submetida, relacionando ambos à tortura e ao sacrifício. Desta forma, Plath cruza a história da vida psíquica de Esther com a referência histórica da Guerra Fria, revelando uma instância de inseparabilidade entre ambas.
  • 3
    “Entrei no elevador e apertei o botão do meu andar. As portas fecharam-se como uma sanfona muda. Então meus ouvidos fizeram um barulho estranho e percebi uma chinesa enorme de olhos borrados me encarando com ar idiota. Era eu, claro. Fiquei chocada com o quanto estava enrugada e esgotada” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:25).
  • 4
    “O rosto no espelho parecia o de uma índia doente” (Plath, 2014PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo, Biblioteca Azul, 2014.:127).
  • 5
    No original: “The one by whom the abject exists is thus a deject who places (himself), separates (himself), situates (himself), and therefore strays instead of getting his bearing, desiring, belonging, or refusing. Situationist in a sense, and not without laughter - since laughing is a way of placing or displacing abjection”.
  • 6
    Tal expressão não se limita aos domínios semiológicos e semióticos, mas extrapola por domínios extralinguísticos, não humanos, biológicos, tecnológicos etc., ou seja, atravessa um sem número de matérias heterogêneas (Guattari, 2012GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 2012.:36).
  • 7
    Guattari fala sobre como o processo de culpabilização existe como função da subjetividade no capitalismo: “A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística. A raiz das tecnologias capitalísticas de culpabilização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como ‘quem é você?’, ‘você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?’, ‘o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?’, ‘a que corresponde sua fala?’, ‘que etiqueta poderia classificar você?’ E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo” (Guattari; Rolnik, 2011GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 2011.:49).
  • 8
    No original: “The problem is that if the mastering gaze which separates subject from object of gaze is inherently masculine, can there be a feminine gaze? In response to this impasse hysterical writing installs conventions such as the masculinity of the gaze, the deadness of the feminine body, only to subvert and disturb the security of these stakes in cultural self-representation.”
  • 9
    No original: “But through the efforts of thought in language, or precisely through the excesses of the languages whose very multitude is the only sign of life, one can attempt to bring about multiple sublations of the unnameable, the unrepresentable, the void. This is the real cutting edge of dissidence.”
  • 10
    No original: “Living on borders and in margins, keeping intact one's shifting and multiple identity and integrity, is like trying to swim in a new element, an 'alien' element”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    12 Jan 2023
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