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Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados como mecanismo de accountability contra “discursos de ódio”

The Council of Ethics and Parliamentary Decorum as a mechanism of accountability for “Hate Speech”

Resumo

Este artigo tem por objetivo discutir o funcionamento do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados em relação à quebra de decoro parlamentar por discriminação contra minorias. Especificamente, trata-se de abordar a dificuldade de responsabilização de deputados pela emissão de discursos de ódio contra pessoas LGBT, mulheres, mulheres pretas e vítimas da ditadura civil e militar. A metodologia é de cunho bibliográfico e documental. Os principais resultados são: o Conselho em questão é um mecanismo institucional de accountability por apurar e deliberar acerca de casos de desvio de conduta através de representações em face de um deputado; apesar do cumprimento de todas as regras de procedimento durante o processo de responsabilização, as representações (denúncias) são arquivadas, indicando que, substantivamente, os deputados não são accountable; este é um cenário de “humilhação institucional” por comunicar que o direito à liberdade de expressão é absoluto.

Conselho de Ética e Decoro Parlamentar; Câmara dos Deputados; Accountability; minorias

Abstract

The objective of this article is to discuss the operation of the Ethics and Parliamentary Decorum Council of the Chamber of Deputies in relation to breaches of parliamentary decorum for discrimination against minorities. Specifically, it considers the difficulty to hold deputies accountable for hate speech against LGBT, women, Black women, and victims of the civil and military dictatorship. The methodology is bibliographic and documentary. The main results are: the Council examined is an institutional mechanism for accountability, and for investigating and deliberating over cases of misconduct based on complaints filed against deputies. Despite compliance with all procedural rules during the accountability process, complaints are usually left unconcluded, indicating that, substantively, deputies are not held accountable. This creates a situation of “institutional humiliation” by communicating that the right to freedom of expression is absolute.

Council for Ethics and Parliamentary Decorum; Chamber of Deputies; Accountability; Minorities

Introdução

A dificuldade de realizar o fenômeno da representação política de grupos substantivamente minoritários (Mouffe, 2015MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo, Editora WFM Martins Fontes, 2015.; Young, 2002YOUNG, I.M. Inclusion and Democracy. Oxford, Oxford University Press, 2002.) é mote de debates e análises por parte de autoras e autores dos variados matizes das teorias políticas democráticas. Os obstáculos ao alcance de direitos podem ser atribuídos ao “caráter excludente das normas de representação” (Young, 2006YOUNG, I.M. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, 2006, pp.139-190 [https://www.scielo.br/j/ln/a/346M4vFfVzg6JFk8VZnWVvC/?format=pdf⟨=pt - acesso em: 29 jul. 2022].
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:140). São comuns as inquietações e os conflitos que apontam para o problema da representação em “organismos influentes de discussões e tomadas de decisão, tais como legislaturas, comissões e conselhos” (Young, 2006YOUNG, I.M. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, 2006, pp.139-190 [https://www.scielo.br/j/ln/a/346M4vFfVzg6JFk8VZnWVvC/?format=pdf⟨=pt - acesso em: 29 jul. 2022].
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).

As tentativas de conferir solução a esse tipo de questão assentam-se na defesa e no incentivo de mecanismos que possam conduzir à uma “maior representação dos grupos sub-representados” (Young, 2006YOUNG, I.M. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, 2006, pp.139-190 [https://www.scielo.br/j/ln/a/346M4vFfVzg6JFk8VZnWVvC/?format=pdf⟨=pt - acesso em: 29 jul. 2022].
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). Na literatura sobre o tema, podem ser observados alguns recursos nessa direção. O primeiro diz respeito à presença física de grupos excluídos nos processos decisórios, através das cotas eleitorais por exemplo, a qual figura como um recurso amplamente debatido em pesquisas sobre teoria política. Como forma de iluminar o debate e contribuir para o campo de estudos, pesquisas empíricas vêm sendo largamente realizadas no Brasil sobre a questão da dificuldade de representação de minorias (Abreu, 2011ABREU, Maria Aparecida Azevedo. Cotas para mulheres no Legislativo e seus fundamentos republicanos. Texto para Discussão do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada. Brasília, 2011, pp.6-32 [https://www.econstor.eu/bitstream/10419/91034/1/667444157.pdf. - acesso em: 30 jul. 2022].
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; Araújo, 2001ARAÚJO, Clara. Potencialidades e limites da política de cotas no Brasil. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 9, 2001 pp.231-252 [https://www.scielo.br/j/ref/a/V75SLT5r9DFZgHYJkfKqGXg/?lang=pt. - acesso em: 30 jul. 2022].
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e Sacchet, 2012SACCHET, Teresa. Representação política, representação de grupos e política de cotas: perspectivas e contendas feministas. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, 2012, pp.399-431 [https://www.scielo.br/j/ref/a/GjpMXFGjwnfzZYbxpvR3zCC/abstract/?lang=pt. - acesso em: 30 jul. 2022].
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).

Outras formas de representação política de minorias consistem, por um lado, na atuação parlamentar por meio da proposição de projetos de lei e, por outro, por meio da emissão de pronunciamentos favoráveis a esses grupos excluídos, como também de falas que se contrapõem a eventuais tentativas de negação de suas existências.

No que se refere especificamente à representação política que objetiva tanto se posicionar a favor de minorias quanto reagir a discursos intolerantes, cito uma pesquisa que estabelece conexão direta com as questões do presente artigo. A tese de doutorado intitulada “Performances discursivas sobre o conflito político LGBT na Câmara dos Deputados” (Santos, 2019SANTOS, Anastácia. Performances discursivas do conflito político sobre a questão LGBT na Câmara dos Deputados. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2019.) propôs-se a discutir aspectos do tratamento político conferido à matéria legislativa LGBT no curso do processo legislativo da Câmara dos Deputados. O estudo toma como ponto de partida as pistas fornecidas por pesquisas que tratam da dificuldade de aceitação, respeito e reconhecimento das pessoas LGBT por grupos políticos que se identificam a denominações religiosas evangélicas (Miskolci, 2007MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/abstract/?lang=pt. - acesso em: 15 dez. 2021].
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; Natividade; Oliveira, 2009NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Revista Latinoamericana (02), 2009, pp.121-161 [https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/32. - acesso em: 15 dez. 2021].
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; Silva, 2015SILVA, Luis Gustavo. O Brasil ao pé da cruz: notas sobre a representação política de pentecostais e neopentecostais. Revista Pensamento Plural (17), Pelotas, 2015, pp.101-127 [https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pensamentoplural/article/view/5619%3E - acesso em: 5 dez. 2021].
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). As leituras desses autores conduziram a reflexões acerca dos conflitos que atravessam interações políticas e sociais entre, de um lado, expressividades que não se identificam ao dito padrão heteronormativo e, de outro, formas de posicionamento no mundo que emitem opiniões de teor acusatório e inferiorizante contra minorias sociais.

Este cenário de embates discursivos, que parecia se caracterizar por uma rivalidade indissolúvel, aventou a ideia de explorar, especificamente, o tratamento discursivo que vinha sendo conferido à matéria legislativa LGBT na Câmara. As pistas oferecidas pelo estado da teoria já mencionado – e pelo contato com discussões sobre reconhecimento de minorias, conflitos e sub-representação na sociedade e nas instâncias de poder (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de ciências sociais, Coimbra, n. 63, 2002, pp.07-20 [https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/63/RCCS63-Nancy%20Fraser-007-020.pdf - acesso em: 30 jul. 2022].
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; Mouffe, 2015MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo, Editora WFM Martins Fontes, 2015.), além da flagrante dificuldade para minorias de conquista e manutenção de direitos e de acesso à ampla participação no mundo público – suscitaram o interesse de perscrutar quais eram as categorias mobilizadas por deputados federais em torno da matéria legislativa LGBT.

Isto foi possibilitado ao acionar os pronunciamentos de deputados sobre o tema LGBT, os quais se encontram na página oficial da Câmara dos Deputados. Para acessar esses discursos, é necessário fazer uma busca a partir de palavras-chave. Os termos utilizados tiveram como critério as palavras constantes no estado da arte, as quais apontavam para o traço de rivalidade na interação, tais como “homossexual”, “homossexualidade”, “LGBT”, “pedófilo”, “pedofilia” e “aberração”. As leituras iniciais confirmaram as evidências presentes na bibliografia segundo as quais as sessões legislativas sobre gênero e sexualidade eram marcadas por falas ofensivas notoriamente contra pessoas LGBT e mulheres, o que tinha como reação o posicionamento de deputados que se dispunham a tentar conter e impedir tanto o avanço de falas acusatórias como também a produção de proposituras legislativas contrárias aos interesses dessas minorias.

Em pronunciamento realizado na fase “Pequeno Expediente”1 1 Trata-se da primeira fase de uma sessão ordinária do Plenário da Câmara dos Deputados. Tem duração de, no máximo, sessenta minutos e destina-se a tratar da matéria do expediente e de comunicações de parlamentares previamente inscritos. Ver mais em: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario-legislativo/-/legislativo/termo/pequeno_expediente. Último acesso em: 20 jul. 2022. da Câmara dos Deputados, em 2017, é feita a seguinte consideração por um deputado federal à época:

A transgeneridade, pelas mãos da Organização das Nações Unidas – ONU, toma contornos de um movimento bilionário e com pompa mundial. Com o fracasso do aborto, os contraceptivos tiveram sucesso, a guinada para a política de gênero explode no mundo. De 10 anos para cá, nós somos inundados com as mais variadas possibilidades de sexualidades, inclusive bizarras. Todo o aporte midiático, financeiro e cultural se move na direção de destruir os papeis naturais entre o homem e a mulher (...) de forma breve, eu trouxe um pouco aqui, Presidente, do que é a base teórica da ideologia de gênero. Portanto, não há separação entre a ideologia de gênero, a agenda LGBT, feministas e pedófilos. Eles compõem o mesmo vértice destrutivo, com o mesmo objetivo: destruir a família2 2 Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=302.3.55.O&nuQuarto=11&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=14:30&sgFaseSessao=PE%20%20%20%20%20%20%20%20&Data=11/10/2017&txApelido=ONYX%20LORENZONI&txFaseSessao=Pequeno%20Expediente%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&dtHoraQuarto=14:30&txEtapa=Com%20reda%C3%A7%C3%A3o%20final. Último acesso em: 16 abr. 2023. .

Os conteúdos dos discursos e de tantos outros disponíveis na página da Câmara dos Deputados indicam que:

A “luta por reconhecimento” está rapidamente se tornando a forma paradigmática de conflito político no final do século XX. Demandas por “reconhecimento da diferença” dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e sexualidade (Fraser, 2006FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo. São Paulo, v. 15, n. 14-15, 2006, pp.231-239 [https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50109/54229. - acesso em: 30 jul. 2022].
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:231).

A reflexão empreendida por Nancy Fraser combina-se às de Chantal Mouffe na medida em que ambas dão enfoque aos processos de disputa que envolvem as demandas por reconhecimento e respeito a minorias3 3 Outras conceituações foram feitas no trabalho de tese mencionado. Para os objetivos propostos neste artigo, vali-me apenas das noções centrais que mais colaboram para justificar o recorte deste texto. . Dentre outros aspectos, Mouffe direciona sua crítica à parte do pensamento político contemporâneo que toma o advento da violência como um fenômeno de passado que poderia vir a ser superado pelo diálogo e pelo consenso. As noções de agonismo e antagonismo são prementes.

Em O Regresso do Político (2015), Mouffe apresenta sua crítica a autores pluralistas que discutem a democracia liberal. A despeito da prerrogativa encampada por Rawls (1999)RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Massachusetts: Harvard University Press, 1999., Dworkin (2003)DWORKIN, Ronald. O Império do direito. São Paulo, Martins Fontes, 2003. e Larmore (1996)LARMORE, Charles. The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge, 1996. segundo a qual existe um Estado neutro e que permite a coexistência de distintas opções de vida e concepções de bem, a autora postula que:

A abordagem consensual, em vez de criar as condições para a reconciliação da sociedade, leva ao surgimento de antagonismos que uma perspectiva agonística, ao oferecer a esses conflitos uma força legítima de expressão, teria conseguido evitar (Mouffe, 2015MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo, Editora WFM Martins Fontes, 2015.:4).

Dito de outro modo, na esteira da crítica à parte dos teóricos da democracia, que acreditam na possibilidade de um consenso logrado a partir de indivíduos racionais que decidem estabelecer contratos prévios de acomodação de interesses e valores contraditórios com projeção universal, a autora propõe a imaginação de uma esfera pública “agonística”. Nesse modelo, a contestação e a confrontação de projetos políticos díspares são partes constitutivas do que ela denomina de modelo de “democracia agonística”. A identificação e o reconhecimento público do antagonismo inerente a todo indivíduo e a todas as relações sociais pressupõem a construção de um modelo de democracia que acomode a violência, o dissenso e o confronto.

As interações discursivas entre deputados defensores e favoráveis às agendas políticas LGBT, apesar de marcadas por adjetivações mutuamente ofensivas, seguem conforme a rotina regimental. Em nome da liberdade de expressão, falas misóginas, LGBTfóbicas, racistas, xenófobas e antidemocráticas são tomadas como parte da “democracia consensual” (Mouffe, 2015MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo, Editora WFM Martins Fontes, 2015.), sendo naturalizadas como direito de emitir opiniões. Uma das principais inquietações provocadas pelas discussões da tese em questão diz respeito ao posicionamento da Câmara dos Deputados em relação a esse tipo de “opinião”. Considerando os sentidos e as representações sociais embutidas em seus conteúdos, considero que tais opiniões podem ser classificadas como “discursos de ódio”, os quais se caracterizam por formas de insulto, intimidação ou assédio a pessoas em função de seu gênero, sexo, cor, raça, etnia, nacionalidade ou religião (Schafer; Leivas; Santos, 2015). Outras acepções denotam que o “discurso de ódio” não indica apenas uma antipatia, mas uma hostilidade direcionada a determinado grupo (Diaz, 2011DIAZ, Álvaro Paul. La penalización de la incitación al odio a la luz de la jurisprudencia comparada. Revista Chilena de Derecho, Santiago, v. 38, n. 2, 2011, pp.503-609 [https://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-34372011000300007 - acesso em: 29 jul. 2022].
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). Na mesma esteira, Meyer-Plufg (2009) salienta o caráter de incitação à discriminação contido nos ataques a minorias.

Tais considerações da literatura sobre discursos de ódio estabelecem ressonância com as opiniões emitidas por deputados, cujo agir político é pautado por representar minorias na chave da negação. Desse modo, perguntei-me: como os deputados defensores das pautas de gênero se debruçam sobre essas condutas odiosas, para além do importante trabalho já realizado de se contrapor discursivamente a essa ofensiva e da elaboração de proposituras de defesa a minorias? Dito de outro modo, quais outras modalidades de representar politicamente as minorias, se tomarmos representação como agir em prol de algo ou alguém, podem ser realizadas por deputados defensores de minorias? Quais dispositivos institucionais podem ser acionados se partirmos do pressuposto de que o ataque à dignidade de deputados e pessoas pode constituir quebra de decoro parlamentar?

De acordo com o regimento interno da Câmara dos Deputados, cabe ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar a observância dos preceitos éticos que regulam as condutas de seus deputados, bem como dar seguimento a eventuais procedimentos disciplinares instaurados para apurar quebra de decoro. O Conselho de Ética é, portanto, um possível mecanismo de regulação, contestação e responsabilização de falas intolerantes contra minorias. Mais do que isso: é um recurso adicional de representação política, previsto regimentalmente pelo processo legislativo, para além de outras modalidades já mencionadas, tais como a submissão de proposituras legislativas favoráveis a minorias, bem como a defesa e a reação a tentativas de negação de grupos excluídos.

Dito isso, este artigo destina-se a fazer uma discussão sobre a dificuldade de responsabilização de deputados em virtude de falas discriminatórias por meio do mecanismo de accountability4 4 Mais à frente, será realizada uma discussão sobre alguns sentidos do conceito de accountability, de modo articulado às questões do artigo em tela. denominado Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados. Busco argumentar que a dinâmica de funcionamento dessa modalidade de representação política aponta para a funcionalidade do órgão apenas no registro procedimental, e não de fato, em sua concretude, o que corresponde a um processo de negação de grupos excluídos por atores institucionais.

Na Câmara dos Deputados, as manifestações de oposição a falas intolerantes, acompanhadas de pedidos de responsabilização, são realizadas no âmbito do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar dessa mesma casa legislativa. A autoria dessas contestações e exigências de prestação de contas partem de partidos políticos e se direcionam a deputadas ou deputados através de um documento chamado “representação”. Os motivos que levam uma agremiação partidária a representar em face de um parlamentar vão desde acusações de corrupção, envolvimento em crimes hediondos e a ataques à dignidade. Mas quero conferir relevo às denúncias motivadas por falas discriminatórias contra minorias.

Importa, contudo, esclarecer o mecanismo de coleta das representações ora utilizadas para compor as análises deste artigo. Todas as representações encaminhadas por partidos à mesa diretora, as quais compreendem o período de 2002 a 2022, estão disponíveis para leitura e podem ser acessadas na página oficial da Câmara dos Deputados5 5 Disponível em: https://www.camara.leg.br/. Último acesso em: 30 jul. 2022. .

Ao fazer as leituras do conteúdo das representações e acompanhar suas fases de tramitação, verifiquei que todas as denúncias por ofensa a minorias foram arquivadas. O ciclo de tentativa de reparação e responsabilização, que se inicia quando um partido provoca a mesa diretora com uma representação e se encerra com a absolvição do acusado, é desapontador para os proponentes da ação ao mesmo tempo que subscreve e fomenta a continuidade de manifestações de desrespeito e não reconhecimento a esses grupos, sob a salvaguarda da prerrogativa da imunidade material parlamentar.

A demonstração dessa dinâmica será operada a partir dos seguintes pressupostos, os quais estabelecem articulação com categorias-chave dos campos sociológico e politológico. Em primeiro lugar, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados é um canal de representação política no sentido de accountability (prestação de contas e responsabilização). Outro ponto de partida é considerar que o objeto de contestação e exigência de prestação de contas em questão são as falas, discursos e opiniões (discursos de ódio), cujo traço caracterizador é a dificuldade de reconhecimento e respeito de minorias. E, por último, pressuponho que a absoluta liberalidade de falas ofensivas, o que se evidencia pelo fato de que todos os processos instaurados por quebra de decoro foram arquivados, constitui “humilhação institucional” (Margalit, 1996MARGALIT, Avishai. The Decent Society. Massachusetts, Harvard University Press, 1996. Tradução: Naomi Goldblum.; Piroli, 2016PIROLI, Diana. Uma análise sobre o conceito de humilhação. Seara filosófica (12), Pelotas, 2016, pp.111-125 [https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/searafilosofica/article/view/7656/597. - acesso em: 15 dez. 2021].
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) e aponta para a sub-representação política de minorias.

O artigo está dividido da seguinte forma: na primeira seção apresento o Conselho, sua composição, algumas normas de funcionamento e uma breve discussão sobre accountability e responsabilidade do ator público. Na segunda seção, apresento as representações (denúncias), por quebra de decoro contra minorias, encaminhadas ao Conselho de Ética, além de conectar o material empírico a noções sociológicas sobre “representação”. Por último, na terceira seção, analiso a dificuldade de o Conselho de Ética funcionar como um mecanismo de accountability nos casos de quebra de decoro por discriminação contra minorias.

Conselho de Ética e Decoro Parlamentar como canal de accountability

O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é o órgão da Câmara dos Deputados responsável pela regulação do comportamento de deputadas e deputados, conforme dispõem as normativas que orientam seus trabalhos, quais sejam, o Regimento Interno e o Código de Ética6 6 O caminho é o seguinte: acessar a página oficial da Câmara; clicar na aba “Institucional”, no canto esquerdo superior; clicar em “Papel e Estrutura”; rolar a página e clicar em “Estrutura Organizacional”; à esquerda, clicar na aba “Conselho de Ética e Decoro Parlamentar”; à esquerda, clicar em “Representações”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/eticaedecoro/arquivos/Codigo%20de%20Etica%20da%20CD.pdf. Último acesso em: 30 jul. 2022. desta casa legislativa. De acordo com o Art. 21-E do Capítulo III-B do Regimento Interno da Câmara7 7 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados. Último acesso em: 30 jul. 2022. , compete ao Conselho examinar as condutas puníveis e proceder à proposição das penalidades aplicáveis aos deputados submetidos ao processo disciplinar.

Em seu Art. 6º, capítulo II, é mencionado que compete ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar: i. A observância dos preceitos do Código de Ética, buscando preservar a dignidade do mandato parlamentar, ii. Processar os acusados, iii. Instaurar o procedimento disciplinar; e responder consultas da mesa diretora, comissões, partidos e deputados sobre assuntos relacionados ao processo disciplinar.

Criado em outubro de 2001, por meio da Resolução 258 8 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2001/resolucaodacamaradosdeputados-25-10-outubro-2001-320496-norma-pl.html. Último acesso em: 30 jul. 2022. dessa casa legislativa, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é composto por 42 membros, dentre os quais participam 21 titulares e 21 suplentes, que exercem o mandato por um período de dois anos.

Qualquer cidadão é autorizado a efetuar uma denúncia no Conselho caso entenda que um deputado atentou contra o decoro parlamentar, desde que especifique os fatos e as provas pertinentes. Pela interpretação da linguagem presente no Código de Ética, depreendo que o fenômeno “denúncia contra um deputado” significa que a parte autora realiza um “requerimento de representação” contra ele, junto à mesa diretora da Câmara. Em seguida, esta irá apreciar o requerimento, cuja tarefa será a de verificar a existência de indícios que justifiquem a ação ou optar pela sua inépcia, que significa que a denúncia não tem os requisitos necessários para lhe dar seguimento. Após esse percurso é que a representação será encaminhada ao Conselho de Ética.

Para o caso objeto deste artigo, o qual consiste na discussão das representações subscritas por partidos políticos, é previsto no Código de Ética que esse documento não passa pela apreciação da mesa diretora, pois segue diretamente para o Conselho de Ética. O deputado representado, então, será intimado a prestar contas de todos os atos praticados, podendo se manifestar em todas as fases do processo. De modo esquemático, o processo legislativo de responsabilização9 9 As informações podem ser encontradas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados. Último acesso em: 15 out. 2022. parlamentar se dá da seguinte maneira. Como primeira medida, o partido político redige um documento chamado “representação”, no qual são expostos os motivos, justificativas e evidências que levam um partido ou bloco partidário a tomar essa iniciativa. Em seguida, envia-o à mesa diretora da Câmara, que o autua, transformando-o em um processo e o remete de imediato ao Conselho de Ética. Na etapa seguinte, é agendada uma reunião, a qual ocorrerá no período de uma sessão legislativa, em que participam seus membros, com o intuito de designar seu relator através de um sorteio. Na ocasião, o relator é escolhido dentre os membros de uma lista composta por 3 (três) de seus integrantes (formada via sorteio), desde que o escolhido não pertença à mesma sigla partidária do Representado, tampouco da mesma Unidade Federativa. Em caso de representação de iniciativa de Partido Político, o relator não pode ser do mesmo partido autor da representação. Por último, o Plenário do Conselho de Ética discute acerca da admissibilidade da representação. Caso ela não seja considerada inepta, instaura-se o processo e o relator envia seu inteiro teor ao representado, intimando-o, com vistas a apresentar sua defesa por escrito.

Dentre as formas possíveis de responsabilização, conforme é apresentado no Regimento Interno da Câmara dos Deputados10 10 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados. Último acesso em: 15 out. 2022. , tem-se como possibilidades a censura (verbal ou escrita), a suspensão de prerrogativas regimentais, bem como a suspensão do exercício do mandato, ambas por até seis meses e, por fim, a medida mais delicada é perda de mandato.

Pelo fato de o Conselho de Ética atuar como o órgão responsável por receber denúncias que exigem a responsabilização parlamentar, interpreto que pode ser classificado como um mecanismo de accountability11 11 Há passagens do artigo em que vou utilizar os termos “accountability”, “prestação de contas” e “responsabilização” como dotados de significados semelhantes, a despeito das variadas formulações feitas por autores como Eslter, O’Donnell, Susan Stokes, Manin, dentre outros. não eleitoral, podendo ser vertical (quando a denúncia parte de um mandante/cidadão) ou horizontal (quando a denúncia parte de um partido político com representação na Câmara, eis o caso objeto desse artigo) e que exige a aplicação de sanções.

A definição desse termo é um campo aberto de disputas conceituais dada a dificuldade de delimitação e precisão dos elementos que lhes são constitutivos, quais sejam, “seus objetos, sujeitos, meios e escopo” (Ceneviva, 2006CENEVIVA, Ricardo. Accountability: novos fatos e novos argumentos – uma revisão da literatura recente. Anais do Encontro de Administração Pública e Governança da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, São Paulo, 2006, pp.1-17 [http://www.anpad.org.br/admin/pdf/ENAPG118.pdf. - acesso em: 30 jul. 2022].
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:1).

As definições e discussões relacionadas a accountability são múltiplas e podem ser classificadas de diversas formas. Não constitui um objetivo deste artigo abarcar a diversidade do conceito, mas tão somente ressaltar alguns de seus empregos com vistas a estabelecer uma articulação teórica com o funcionamento do Conselho de Ética especificamente para as denúncias por quebra de decoro contra minorias.

Anna Maria Campos (1990)CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de administração pública da FGV, v. 24, n. 2, 1990, pp.30-50 [https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049/8182. - acesso em: 30 jul. 2022].
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menciona em seu artigo a formulação de Frederich Mosher (1968)MOSHER, Frederich. Democracy and the public service. New York, Oxford University, 1968., segundo a qual accountability pode ser definida como “sinônimo de responsabilidade objetiva ou obrigação de responder por algo como um conceito oposto a – mas não necessariamente incompatível com – responsabilidade subjetiva” (Campos, 1990CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de administração pública da FGV, v. 24, n. 2, 1990, pp.30-50 [https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049/8182. - acesso em: 30 jul. 2022].
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:33). Então, se, por um lado, a responsabilidade subjetiva figura como uma disposição interna da pessoa, a accountability, por ser uma responsabilidade objetiva, pressupõe e engendra a “responsabilidade de uma pessoa ou organização perante uma outra pessoa, fora de si mesma, por alguma coisa ou por algum tipo de desempenho" (Campos, 1990CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de administração pública da FGV, v. 24, n. 2, 1990, pp.30-50 [https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049/8182. - acesso em: 30 jul. 2022].
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). Mosher (1968)MOSHER, Frederich. Democracy and the public service. New York, Oxford University, 1968. acrescenta, ainda, que os responsáveis pelo não cumprimento de diretrizes a que está submetido passa a ser considerado irresponsável e está submetido a possíveis sanções. A partir da formulação de Mosher (1968)MOSHER, Frederich. Democracy and the public service. New York, Oxford University, 1968., Campos pontua que o caráter de obrigação se encontra embutido na noção de accountability, pois, independentemente das crenças e visões de mundo de um ator público, determinada conduta deverá ser exigida por meio de um ente externo em direção ao autor de atos irresponsáveis.

O conteúdo formulado acima estabelece considerável conexão com o funcionamento do Conselho, na medida em que suscita analisar o objeto específico do mecanismo de accountability em questão, que são as representações motivadas por falas intolerantes ou discursos de ódio.

A accountability horizontal ocorre quando dispositivos institucionais previstos em códigos e regimentos de regulação detêm o poder de supervisionar rotinas e inclusive aplicar sanções legais, que vão desde a retratação pública até impedimentos (impeachment) e cassação de mandatos por práticas classificadas como ilícitas ou delituosas (O’Donnell, 1998).

Outro elemento importante presente na discussão sobre accountability diz respeito à possibilidade de punição, podendo existir ou não. Assim:

a ideia de responsabilização transcende a ideia da simples prestação de contas. A accountability não se limita à necessidade da justificação e da legitimação da discricionariedade daqueles que exercem o Poder Público em nome dos cidadãos, mas também deve incluir a possibilidade de sanção (Ceneviva, 2006CENEVIVA, Ricardo. Accountability: novos fatos e novos argumentos – uma revisão da literatura recente. Anais do Encontro de Administração Pública e Governança da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, São Paulo, 2006, pp.1-17 [http://www.anpad.org.br/admin/pdf/ENAPG118.pdf. - acesso em: 30 jul. 2022].
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:2).

O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar possibilita a ocorrência de sanção a um deputado. O órgão é, formalmente, capaz de impor punições, mas, substantivamente, a existência de perfis parlamentares, na condução de responsabilização por quebra de decoro contra minorias, constitui um fator primordial para o arquivamento de denúncias. Assim, os deputados são, procedimentalmente, accountable, mas não o são na prática.

Após esse breve percurso pela discussão sobre accountability, na próxima seção discorro sobre os objetos das representações, isto é, as falas intolerantes ou “discursos de ódio”.

Das representações por quebra de decoro contra minorias: formas de contenção e controle de “representações intencionais” perpetradas por parlamentares

Nesta seção, vou me ocupar de apresentar parte do conteúdo das representações (denúncias) por quebra de decoro contra minorias, ao mesmo tempo que buscarei estabelecer conexões entre os dados empíricos e conceituações sobre formas de representar e classificar as minorias sociais na chave do desrespeito e da negação.

As agremiações partidárias Partido dos Trabalhadores, Partido Socialismo e Liberdade, Partido Comunista do Brasil e Partido Socialista Brasileiro protocolaram, junto à mesa diretora, a Representação nº 36/201412 12 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=840957. Último acesso em: 24 jul. 2022. em face do então deputado federal Jair Bolsonaro por quebra de decoro parlamentar. As razões que justificam a iniciativa são expostas na seção do documento intitulada “DOS FATOS”. O primeiro ponto de argumentação faz referência ao fato de que:

durante anos a sociedade brasileira tem acompanhado estarrecida as reiteradas declarações ofensivas assacadas contra as mulheres brasileiras e homossexuais pelo Representado, durante suas intervenções Parlamentares, tanto na tribuna do Plenário e das Comissões da Câmara dos Deputados, como em outros espaços públicos. O Representado, de forma reincidente, discrimina, induz e incita a discriminação étnica, racial e de gênero.

O objeto central da denúncia é a conhecida fala do parlamentar “só não te estupro porque você não merece”13 13 Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/jair-bolsonaro-repete-insulto-deputada-maria-do-rosario-so-nao-te-estupro-porque-voce-nao-merece-14781338.html. Último acesso em: 20 maio 2022. , direcionada à então deputada Maria do Rosário, no contexto de comemoração do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro do ano de 2014). Na representação, consta que a afirmação acima constitui ameaça de estupro, o que denota um desrespeito à sua condição de representante, mas também configura crime14 14 O conteúdo da representação inclui um rol de crimes nos quais o representado incorre, tais como injúria, difamação etc. , conforme o Art. 14715 15 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm#art147a. Último acesso em: 29 jul. 2022. . Além disso, o documento menciona as condutas misóginas e racistas lançadas ao vivo pela TV Câmara e por vários canais de televisão, configurando, assim, grave ameaça à dignidade de todas as mulheres, negras e negros brasileiros. Os autores da denúncia acrescentam que os fatos narrados não são meras suposições, caracterizando discriminação, o que é incompatível com as responsabilidades e atribuições de um parlamentar.

Dentre os principais elementos presentes em sua fala, destacam-se os seguintes: i) Jair Bolsonaro (PP/RJ) recupera o conflito com aquela deputada, ocorrido no Salão Verde, em que, após ser chamado por ela de “estuprador”, reage dizendo “eu não estuprava você porque você não merece”; ii) o deputado em questão afirma que o dia Internacional dos Direitos Humanos é, na verdade, o “dia internacional da vagabundagem”, posto que só defendem “bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e até corruptos”; iii) em seguida, enfoca em crimes atribuídos a Dilma Roussef durante a ditadura civil e militar no Brasil. O argumento do deputado é o de que falar em direitos humanos, sem considerar os supostos crimes cometidos nesse período de assalto a banco, de armas em quarteis e caminhões de carga, configura uma mentira. Adjetiva a deputada de “mentirosa, deslavada e covarde” e iv) frisa em assunto largamente mobilizado sobre casos de corrupção no Partido dos Trabalhadores e que pessoas morrem por dinheiro desviados nesses episódios de corrupção; v) outro mote recorrente na fala de Jair Bolsonaro (PP/RJ) é a manifestação de preocupação com a “cubanização” do Brasil e da América Latina.

Na representação em tela argumenta-se que o representado ameaça, ainda que de modo velado, cometer um estupro contra a deputada Maria do Rosário. Tais iniciativas configurariam perseguição e ataque à dignidade dessas minorias citadas com o objetivo de desqualificar moralmente as políticas mencionadas. Atos incompatíveis com a responsabilidade a atribuições do cargo.

Outra representação é a de nº 26/201816 16 Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2170517. Último acesso em: 31 jul. 2022. , de autoria do Partido Socialismo e Liberdade, que objetiva a abertura de um processo disciplinar em face do deputado João Alberto Braga da Silva (DEM/DF) por quebra de decoro parlamentar. De acordo com o conteúdo do documento, “em meio ao luto e em total desrespeito à memória de Marielle, o Deputado Alberto Fraga (...) abusou de suas prerrogativas constitucionais para caluniá-la, ao acusá-la de ter sido eleita com a ajuda do Comando Vermelho, de ser ex-esposa de Marcinho VP e de fazer uso de drogas”. Tais afirmações foram feitas pelo denunciado por meio de uma rede social, a qual, em momento posterior, foi utilizada para fazer mais uma postagem considerada no conteúdo da representação como dotada de cunho racista ainda mais pronunciado. O deputado denunciado menciona a reportagem a morte do ex-vereador de Porto Seguro (BA), Aldair Andrade, na seguinte fala: “Na Bahia, não tem intervenção ‘muito menos ele era nego’, sem falar que não era mulher nem gay... Você ficou sabendo dessa execução?”.

A Representação nº 11/201917 17 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2229969. Último acesso em: 24 jul. 2022. trata de denúncia perpetrada por Partido dos Trabalhadores, Partido Socialismo e Liberdade e Partido Comunista do Brasil contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro. O motivo é a alegação do representado de que será necessário dar uma resposta à radicalização da esquerda: “e uma resposta, ela pode ser via um novo AI-5; pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito, como ocorreu na Itália... alguma resposta vai ter que ser dada18 18 Ver mais no link da nota de rodapé 15. ”.

Outra representação é de junho de 2011, em que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) solicita à presidência da Câmara dos Deputados abertura de processo disciplinar contra o então deputado federal, Jair Bolsonaro (PP/RJ), o que se deu através da representação nº 06/201119 19 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=886369&filename=REP+6/2011. Último acesso em: 29 maio 2022. . A motivação da acusação é a de que, em entrevista para um programa de tevê, o então deputado teria associado uma artista negra a comportamentos entendidos pelo parlamentar como “promíscuos”. O representado alegou que a interpretação de sua fala foi deslocada de seu verdadeiro contexto. Entretanto, por dez votos a sete, o Colegiado do Conselho de Ética votou contra a cassação de seu mandato.

Os pronunciamentos proferidos por deputados federais, que foram abordados na pesquisa de tese sobre o conflito político relativo à matéria legislativa LGBT (Santos, 2019SANTOS, Anastácia. Performances discursivas do conflito político sobre a questão LGBT na Câmara dos Deputados. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2019.), e os conteúdos presentes nessas representações podem ser articulados a conceitos sociológicos sobre representação, como forma de iluminar o debate e adensar as análises.

Em O Local da Cultura, Homi Bhabha (1998)BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998. postula sobre a dimensão de “fixidez” nas referências feitas sobre determinados Outros20 20 O autor trata do contexto do colonialismo e enfoca a questão racial. Contudo, vou me apropriar de sua discussão como pontos de análise para tratar do recorte do meu objeto, qual seja, o das representações negativas forjadas sobre minorias, as quais dificultam a representação política desses grupos. . Trata-se de uma “construção ideológica da alteridade” (Bhabha, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998.:105) que enceta um tipo de representação paradoxal: “conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (Bhabha, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998.:105). De acordo com o autor, estereotipar constitui uma ação que se apresenta como o principal recurso voltado para identificar o que já é conhecido e aquilo que deve ser exaustiva e alarmisticamente repetido. É esse processo, entendido como “um modo de representação, complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo” (Bhabha, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998.:110) que confere validade ao discurso colonial. Seu objetivo é tomar o colonizado como “uma população de tipos degenerados”. É uma alteridade que é um “objeto de desejo e escárnio”.

O sistema colonial empreende um sistema de representação que se propõe como a verdade, equiparável ao que é real, quando, de fato, são representações deformadoras da realidade. Assiste-se a um processo de estereotipação do sujeito colonial como selvagem, bestial, luxurioso e anarquista, em que cenas de medo e desejo são retratadas. Busca-se incitar o medo através de falas de cunho fantasioso, tais como o são a dita ideologia de gênero, entendimentos misóginos e racistas da mulher preta como promíscua, o AI -5 como meio de salvação nacional e salvaguarda da liberdade, bem como a imagem de Marielle Franco associada a prática de crimes. Tais considerações guardam estreita proximidade com a discussão de Miskolci (2007)MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/abstract/?lang=pt. - acesso em: 15 dez. 2021].
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sobre pânicos morais.

Alinhada às variadas acepções e interpretações da palavra “representar”, a categoria “pânicos morais” relaciona-se com a discussão sobre as formas de apresentação da pessoa LGBT, o que pode se estender a outras minorias sociais. Diversos fenômenos políticos e sociais podem ser acionados para compreender o temor provocado pelas modalidades de expressão praticadas por certos grupos sociais. Toma-se como exemplo a perseguição a ciganas e ciganos, pessoas em situação de rua, refugiadas e refugiados, pessoas moradoras de favelas cariocas, pessoas com adoecimento mental, dentre tantas outras possibilidades que são representadas no imaginário social como perigosas, o que repercute sobre suas vivências no mundo público, de acesso a direitos e os rótulos que lhes são atribuídos.

Miskolci (2007)MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/abstract/?lang=pt. - acesso em: 15 dez. 2021].
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compreende a expressão “pânico moral” como “o mecanismo de resistência e controle da transformação societária (Miskolci, 2007MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/abstract/?lang=pt. - acesso em: 15 dez. 2021].
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:103). O autor considera o chamado “casamento gay” como um fenômeno que suscita pânico por parte de setores vistos como conservadores, dado seu potencial, na leitura destes, de questionamento de uma ordem social estabelecida que vislumbra como modelo de casamento legítimo o que envolve um homem e uma mulher de acordo com o padrão heteronormativo. Em virtude das imagens negativas construídas historicamente sobre minorias legitimam-se iniciativas, na vida prosaica e na política, que lentificam ou interditam o acesso a direitos inalienáveis.

Correlacionada à discussão sobre “pânicos morais”, a formulação de Albert Hirshamn (1992) sobre as três teses da perversidade mostra-se conectada ao objeto desse escrito, qual seja, a das formas de representação de minorias. As três teses são: da futilidade, perversidade e ameaça. Para os objetivos a que me proponho, destaco para análise a terceira. De acordo com o autor, essa tese tem como máxima que o advento de qualquer reforma ou mudança - que tenha o potencial de modificar ou transformar um certo modo “natural” de as coisas acontecerem - possui um custo muito alto a ser pago. A justificativa principal é a de que tal iniciativa, se levada a cabo, põe em xeque conquistas valiosas adquiridas anteriormente (Hirscham, 1992:15), gerando obstáculos para o progresso humano. Assim, a tese da ameaça, em articulação com a noção de “pânico moral” (Miskolci, 2007MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/abstract/?lang=pt. - acesso em: 15 dez. 2021].
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) e com as análises de Bhabha (1998)BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998. sobre a pessoa colonial, alinha-se às construções sociais que certos segmentos fazem das minorias – enquanto uma categoria “guarda-chuva” por abarcar pessoas e comportamentos entendidos como destrutivos das bases sociais – é vista como uma novidade nociva dotada do poder de destruir o antigo, o tradicional, acarretando então um abalo na estabilidade social. Conforme pronunciamento de Onix Lorenzoni: “porque é o nosso dever, (...) proteger e defender as nossas crianças das garras dessa gente, que não tem respeito, não tem ética, não tem moral; tem apenas um princípio, que é destruir a família”21 21 Discurso proferido na fase “Pequeno Expediente”, em 11 de outubro de 2017 [https://www.camara.leg.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=302.3.55.O&nuQuarto=11&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=14:30&sgFaseSessao=PE&Data=11/10/2017 - acesso em: 30 jul. 2022]. . A tese de Silvia Aguião (2016:151), a partir dos autores Vital e Leite Lopes (2013), chama a atenção para o fato de que muitos políticos vêm ganhando notoriedade na mídia e no Congresso, por meio de ações na internet ou mesmo nas interações com seus pares de casa legislativa, em função das manifestações contrárias a pessoas LGBT, as quais tomam por base um rol de argumentos relacionados ao direito à vida e à preservação da família tradicional, como meio estratégico para construir alianças e ampliar suas articulações políticas. Dinâmica similar se verifica no discurso de Onix Lorenzoni na medida em que emite mensagens disruptivas e alarmistas como forma de posicionar pessoas LGBT no registro da negação, o que tem eco em diversos grupos no Congresso e em suas bases eleitorais e de apoio na sociedade civil.

Conforme se pôde vislumbrar nas linhas acima, o ato de representar as minorias como ameaça social não pode ser compreendida apenas como um ato de descrição no sentido de dizer como algo ou alguém é, como se a mera afirmação fosse o correspondente perfeito do real, não admitindo qualquer outra leitura como legítima. Esse ato de representação, portanto, deve ser lido não na chave da “descrição como isenta”, como se qualquer pessoa visualizasse a mesma situação de uma única forma, mas tomando a ideia de que toda descrição nunca é isenta e carrega em seu bojo necessariamente uma classificação de algo ou alguém. Dessa maneira, tal dinâmica posiciona seu objeto em um lugar de superioridade ou de inferioridade, configurando um processo de hierarquização em que as minorias estão na base da pirâmide.

Isto guarda relação com uma das abordagens estipulada por Stuart Hall (2016)HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro, Apicuri, 2016. sobre os sentidos da representação. Trata-se da “abordagem intencional”. Ela defende “que é o interlocutor, o autor [do discurso], quem impõe o seu único sentido no mundo, pela linguagem. As palavras significam o que o autor pretende que signifiquem” (Hall, 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro, Apicuri, 2016.:48). Hall não desconsidera a legitimidade desse conceito, pois, argumenta o autor, todos nós fazemos uso da linguagem para convencer ou comunicar sobre aquilo que nos é único ou especial, “para o nosso modo de ver o mundo (Hall, 2016:48). No entanto, Hall pontua que a representação intencional também pode ser falha. Sua justificativa é a de que não se pode conceber nossos privatismos como fonte única de significados na linguagem. Assim, é pré-condição que nossas visões de mundo tenham de se adequar a regras e códigos compartilhados. A partir dessas considerações, depreendo que os deputados denunciados buscam impor suas opiniões e sentidos de mundo estereotipados em forma de fixidez (Bhabha, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte-MG, Editora da UFMG, 1998.), os quais, por violarem as normativas reguladoras da Câmara, a Constituição e Convenções Internacionais, são objeto de representação no Conselho de Ética. Além disso, análogo à ressalva de Hall de que privatismos não bastam para conformar uma linguagem, discursos de ódio, da mesma maneira, não compõem um agir político democrático, pois uma atitude legislativa responsável assume vínculos que extrapolam suas filiais mais imediatas, devendo considerar as alteridades antagônicas como merecedoras de respeito e reconhecimento, independentemente de suas disposições mentais. A não atenção a esse caráter de responsabilidade objetiva (Campos, 1999) pelo Conselho de Ética, o que se materializa no arquivamento das representações por discursos de ódio, engendram um cenário de “humilhação institucional”, tornando o Conselho um mecanismo de accountability substantivamente incapaz de ser accountable.

Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, responsabilização (accountability) e humilhação institucional: apontamentos finais

A menção à tese de doutorado (Santos, 2019SANTOS, Anastácia. Performances discursivas do conflito político sobre a questão LGBT na Câmara dos Deputados. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2019.) no início deste artigo intencionou demonstrar que, em parte do processo legislativo que transcorre na Câmara dos Deputados, assiste-se a um cenário em que um determinado perfil de parlamentares opta por, de modo absolutamente livre, fazer referências de cunho ofensivo a grupos politicamente minoritários. Essas ações discursivas – que adjetivam pessoas LGBT, mulheres, negras e negros, vítimas da ditadura civil e militar –, junto a posicionamentos e reações de grupos de deputados defensores das pautas de minorias, instauram e conformam um conflito político que tem como motivo central a “luta por reconhecimento” ou “reconhecimento da diferença” (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de ciências sociais, Coimbra, n. 63, 2002, pp.07-20 [https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/63/RCCS63-Nancy%20Fraser-007-020.pdf - acesso em: 30 jul. 2022].
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).

Outro tipo de rotina legislativa, que estabelece conexão direta com as disputas discursivas em torno da matéria legislativa sobre minorias, diz respeito ao controle interno das condutas parlamentares. O recurso institucional que, regimentalmente, encarrega-se de acompanhar o agir político de deputados é o mecanismo de regulação da Câmara dos Deputados denominado Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Desse modo, tendo em vista que a emissão de discursos de ódio representa, para um grupo de parlamentares, uma conduta desviante dos preceitos que devem reger os atos individuais legislativos, o Conselho em questão parece constituir um canal que é regimentalmente capacitado e responsável por receber, apreciar e apurar denúncias por má conduta (quebra de decoro) contra minorias; no entanto, do ponto de vista substantivo, sua capacidade de sanção parece encontrar entraves.

Conectando esses achados à teoria política democrática, o Conselho situa-se, portanto, como um mecanismo de accountability, isto é, um canal em que entes políticos, por se oporem a certos comportamentos, tomando-os como inadequados, decidem acionar o dispositivo capaz de reparar e punir a eventual quebra de decoro.

Conforme apontam os dados empíricos, todas as denúncias (representações) por discursos de ódio foram arquivadas. Do ponto de vista procedimental, o Conselho efetivamente é um mecanismo de accountability, pois, o mero fato de receber denúncias, apurá-las e lhes conferir encaminhamento e tomada de decisão significa que todos os deputados da Câmara são accountable, ou seja, são passíveis de punição. Isso, por si só, garantiria que se trata de um processo justo e que a tarefa de promover a representação política dos interesses da sociedade foi cumprida.

Nas linhas acima, grafei o termo “capacitado” em itálico. Essa escolha deve ser explicada a partir de agora. Diversas conceituações sobre a noção de accountability postulam que um bom canal de contestação e prestação de contas deve ser capaz de produzir sanção aos representados. Isso me aventou a reflexão sobre a possibilidade de ampliar o sentido da palavra capaz (e suas flexões gramaticais). Conforme já mencionado, o Conselho é apto a promover accountability, mas, no caso de denúncias por discriminação contra minorias, não é factível que o órgão puna o não reconhecimento de minorias. A hipótese, a ser desmembrada em artigo posterior, é a de que certas visões de mundo colonizam e capturam regras procedimentais, conduzindo a processos políticos injustos.

O conflito político motivado pelo não reconhecimento e respeito a minorias, conforme mostra a pesquisa de tese citada, tem a possibilidade formal de ser resolvido no Conselho de Ética. No entanto, os partidos políticos autores das representações, apesar de apresentarem provas materiais e de justificarem a denúncia com base em preceitos e normativas regentes do funcionamento da Câmara dos Deputados, tais como o Regimento Interno e o Código de Ética, não conseguem responsabilizar deputados por quebra de decoro por discriminação. A linha de argumentação central para o arquivamento sem qualquer tipo de reparação por má conduta é a de que o Art. 53 da Constituição Federal garante a prerrogativa da imunidade parlamentar e, por consequência, a livre expressão de opiniões parlamentares, independente de seus conteúdos e da possibilidade de afetação gerada pela emissão de discursos que afrontam certos grupos sociais.

Nessa linha, Schäfer, Leivas e Santos (2015) discutem os limites da mobilização da imunidade material parlamentar por parte de representantes políticos, pois em certos casos é considerado pelos autores como guarida para a verbalização de opiniões que atingem a dignidade de minorias.

Infere-se então que a imunidade material parlamentar, permite, dentre outros aspectos, que o representante faça uso da palavra para defender suas opiniões e posicionamentos. Contudo, nos casos em que se verificam práticas abusivas ou que são violadoras de direitos, existem visões sobre o assunto que desabsolutizam a liberdade de conduta parlamentar.

Outra mensagem emitida pelo cenário de arquivamentos e não responsabilização é que não se tem um “agir político responsável” (Habermas, 1997), pois:

Agir responsavelmente significa que o agente assume em relação às próprias ações, e no futurum exactum, a perspectiva metódica de alguém que é, ao mesmo tempo, ele mesmo, um especialista e um outro generalizado, validando assim, de modo objetivo, social e temporal, os critérios do agir (Habermas, 1997:63).

As considerações acima de Habermas (1997) articulam-se às de Hall (2016)HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro, Apicuri, 2016. na medida em que ambas reforçam a dificuldade de superação de perspectivas privatistas, como é o caso dos ocupantes de cargos que emitem discursos de ódio, pautadas na liberdade enquanto livre-arbítrio, sem considerar que o vínculo de um parlamentar, por força de cargo, extrapola suas afinidades de grupo mais imediatas, devendo considerar suas obrigações a despeito de disposições mentais.

Diante do déficit de atuação do Conselho de Ética, torna-se premente a articulação de um debate público, via sessões legislativas ou audiências públicas, que aja no sentido de tornar os deputados de fato accountable. O cenário de coexistência entre, de um lado, a possibilidade de enquadramento de declarações homofóbicas e transfóbicas no crime de racismo, por decisão do Supremo Tribunal Federal e, de outro, as reiteradas manifestações LGBTfóbicas em casas legislativas do país parece constituir uma contradição democrática com repercussões significativas para a ordem pública.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2021
  • Aceito
    15 Fev 2023
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