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Espera, cuidado e deficiência: As produções do tempo na trajetória de mães de adultos com deficiência intelectual

Waiting, Caring, and Disability: The Makings of Time for Mothers of Adults with Intellectual Disabilities

Resumo

No Brasil, a centralidade do cuidado familiar faz com que a vida de mães de pessoas com deficiência seja marcada pela busca por serviços adequados para seus filhos. Com base em um trabalho de campo realizado junto a mães de adultos com deficiência intelectual da cidade de Porto Alegre, examinarei, a partir da trajetória de vida de uma de minhas interlocutoras, as dependências que se dão “ao longo do tempo” e suas transformações ao longo da vida. Com isso, busco compreender como o tempo do cuidado e o ‘tempo aleijado’ (Crip Time) atuam na conformação do cuidado familiar da pessoa com deficiência. Proponho, por fim, que o reconhecimento dessas temporalidades dissidentes é essencial para a valorização do trabalho do cuidado e da experiência da deficiência.

Cuidado; Deficiência intelectual; Temporalidades; Família; Espera

Abstract

For mothers of people with disabilities in Brazil, the centrality of family-based care results in a life of constant searching for adequate of services for their children. A trajectory marked by long waiting moments. Based on fieldwork conducted with of mothers of adults with intellectual disabilities in Brazil and their long waits, I will examine dependencies that occur “over time” and how they are transformed through the life-course. I seek to examine how care time and crip time act on shaping disability and care in Brazil. Finally, I argue that the recognition of these dissident temporalities is essential for the valuing of care work and the experience of disability.

Care; Intellectual disability; Temporalities; Family; Waiting

Em maio de 2017, participei de uma reunião em uma associação sem fins lucrativos que oferece atividades para adultos com deficiência na cidade de Porto Alegre. Além dos funcionários da Associação, estavam na sala dezoito mulheres entre trinta e cinco e oitenta anos que esperavam por seus filhos enquanto estes realizavam as atividades ofertadas naquele dia e horário. Destas, quatro eram negras e as demais brancas. Com exceção de uma avó e uma tia, todas eram mães de pessoas com deficiência. Após falar de minha pesquisa, ouvi sobre sua preocupação para com um futuro incerto no que tange a capacidade de prover os cuidados, a insatisfação quanto à quantidade de serviços disponíveis para seus filhos e uma constante reclamação contra um “Estado que não faz nada”. Antes do término da reunião, Camila1 1 Todos os nomes próprios utilizados neste artigo são fictícios. , mulher de quarenta e seis anos, negra, divorciada, massoterapeuta e mãe de um jovem autista de vinte e três anos, afirmou que eu iria aproveitar muito o tempo na Associação, pois “cada história aqui é única. Cada experiência é uma”. Fui convidada a voltar e o fiz, e, entre maio de 2017 e julho de 2018, frequentei semanalmente a sala de espera junto àquelas mulheres.

Foi minha pesquisa de doutorado (Fietz, 2020) que me levou até a Associação, mais especificamente um convite feito por Vera, sua gerente regional, para que eu conhecesse o trabalho que realizavam junto a famílias de pessoas com deficiência. Interessada nos processos de tomada de decisão sobre onde e com quem adultos com deficiência intelectual2 2 Reconheço a amplitude da categoria “deficiência intelectual” e não a utilizo com a finalidade de homogeneizar a experiência de todos meus interlocutores, mas sim para que, como salienta Lopes (2019), inserir-me em debates acadêmicos e políticos no cenário brasileiro e internacional que fazem uso da categoria. Historicamente, nos conceitos biomédicos, a deficiência intelectual foi configurada como um “atraso cognitivo” associado a uma suposta incapacidade para aprender decorrente de um desenvolvimento inferior àqueles considerados típicos (Dias; Lopes de Oliveira, 2013). Apesar de os filhos de minhas interlocutoras viverem com diferentes diagnósticos, tais como Síndrome de Down, autismo, “retardo mental” e até mesmo sem um diagnóstico específico, as noções de “falta”, “atraso” e “incurável” permeiam seus cotidianos tão marcados pela experiência do capacitismo. Sobre deficiência intelectual na antropologia brasileira, ver Lopes (2020, 2019); Simões (2017), e Fietz (2020, 2016). iriam morar, iniciei meu trabalho de campo junto a um grupo de mães da cidade de Porto Alegre que lutava por moradias assistidas para seus filhos a fim de compreender o que estava em jogo nessa reivindicação. Ao longo do tempo, tornou-se evidente que a questão do “morar” está inscrita em aspectos mais amplos que dizem respeito às representações públicas da deficiência, às políticas públicas que versam sobre essa questão, às relações familiares e a expectativas dessas famílias quanto ao futuro. Foi necessário, portanto, expandir minha rede para além do grupo em questão. Como as mães daquele primeiro grupo eram também vinculadas a outros coletivos de pessoas com deficiência e costumavam participar de diferentes eventos sobre o tema, acompanhei-as em algumas destas ocasiões.

Em um desses eventos, conheci Vera. Na Associação, pude conhecer mulheres com trajetórias de vida distintas, assim como o eram as especificidades corporais e mentais de seus filhos e filhas. Pude, com isso, compreender como as vidas de minhas interlocutoras são marcadas por longas e contínuas esperas, uma vez que, durante a vida dos filhos, agora já adultos, foram elas as responsáveis por traçar junto a eles diferentes percursos na busca por atividades terapêuticas, educacionais e de lazer. Uma caminhada que depende também da descoberta desses espaços e, na ausência daquilo que procuram, por vezes da sua criação. Encontrar esses locais, traçar essas redes, buscar o local mais adequado – locais que os filhos gostem e que as famílias possam pagar –, tudo isso é um trabalho que demanda tempo, e a essas mulheres cabe “fazer o tempo” desse cuidado. Um “fazer tempo” que exige também esperar.

Neste texto, buscarei analisar os modos como minhas interlocutoras aprendem a “fazer o tempo” ao longo de suas trajetórias enquanto mães-cuidadoras, ao mesmo tempo que são atravessadas por temporalidades distintas em suas práticas de cuidado.3 3 A dimensão temporal do ato de maternar vem sendo abordada de diferentes maneiras em trabalhos recentes. Adriana Vianna (2015), em trabalho realizado junto a famílias, em especial mães, que buscam justiça por filhos assassinados por agentes estatais, diferencia o “tempo familiar” do “tempo de luta”, a fim de marcar os diferentes modos pelos quais o tempo age nas práticas dessas mulheres. A autora aponta como o segundo, marcado pela burocracia e ordem de poder, não condiz com a urgência e dinamismo do primeiro. As esperas, que constituem e demarcam essas relações de poder, são com isso uma constante na vida dessas mulheres (Vianna, 2015). Já Camila Fernandes (2018), em sua pesquisa junto a mães de classes populares da cidade do Rio de Janeiro, articula gênero, classe, raça e geração em uma análise a partir do tempo do cuidado para refletir sobre os diferentes engajamentos com o tempo entre homens e mulheres, bem como sobre como a generificação das relações de cuidado age na mobilidade de suas interlocutoras. Apresentando as noções de “tempo para mim”, “tempo para os outros” e “tempo de ‘correr atrás”, a autora sugere que “a luta das mulheres ocorre na tentativa de garantir mobilidade para ‘correr atrás’, na balança entre o ‘tempo para mim’ e o tempo para o outro. Minha pesquisa se soma a esses esforços de pensar sobre tempo, cuidado e relações familiares, porém em diálogo com os estudos sociais da ciência e tecnologia e os estudos sobre a deficiência. Em um contexto em que o tempo produtivo é o predominante, ou seja, em que somos compelidos a agir sempre na busca por produzir um futuro melhor que está diretamente relacionado a obtenção de ganhos econômicos (Adams; Murphy; Clarke, 2009; Bellacasa, 2017), a espera pode ser vista como um desperdício. Argumentarei, no entanto, que a espera, enquanto a prática de cuidado que é, deve ser compreendida como parte do tempo do cuidado, que, por sua vez, desafia esse ideal de um tempo linear e produtivo (Bellacasa, 2017). No caso de minhas interlocutoras, suas vidas estão também inscritas no crip time (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.), ou seja, no tempo de pessoas cujos corpos e mentes não se adequam aos regimes dominantes de temporalidade por levarem mais tempo do que o esperado para realizarem certas atividades. Com isso, elas devem reorientar o modo como experenciam o tempo, a fim de que este comporte essas diferenças.

Pensar sobre e a partir dessas esperas permite uma reflexão sobre como as temporalidades dissidentes agem nas práticas de minhas interlocutoras e nos leva a reconhecer sua importância sob a pena de tornamos ainda mais invisibilizadas a vida daqueles que são feitos esperar. O tempo será aqui pensado, portanto, como algo que é feito, que é o resultado de práticas e que está inscrito em nossas corporeidades (Bellacasa, 2017). No entanto, o tempo é também um agente que trabalha nas relações (Das, 2007DAS, Veena. Life and Words: Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.) e age sobre o modo como estas mães se relacionam com os seus filhos, com as expectativas que têm quanto ao futuro e em como narram suas histórias depois de anos convivendo diariamente com a deficiência. A espera, afinal de contas, fala também sobre a esperança e as expectativas que são feitas e refeitas ao longo da vida. É por essa razão que proponho que a espera e o esperar dizem muito sobre a relação entre cuidado e deficiência intelectual.

Situando a espera

Foi minha presença na sala de espera da Associação que fez com que eu me atentasse para a dimensão temporal da experiência de minhas interlocutoras. Apesar de saber o quão importante as salas de espera podem ser para pesquisas acadêmicas ao proporcionarem um convívio intenso com os interlocutores (Cohn, 2001; Correa, 2016CORREA, Ranna Mirthes Sousa. Procuram-se pais: um estudo etnográfico sobre investigações de paternidade para o registro civil. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2016.; Fleischer, 2018FLEISCHER, Soraya. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. Brasília, EdUFSCar, 2018.; Matos, 2016; Mattingly, 2010MATTINGLY, Cheryl. The Paradox of Hope: Journeys Through a Clinical Borderland. Berkeley, University of California Press, 2010.; Ticktin, 2013TICKTIN, Miriam. The Waiting Room. Somatosphere, 2013 [http://somatosphere.net/2013/the-waiting-room.html/ - acesso em: 05 abr. 2023].
http://somatosphere.net/2013/the-waiting...
), ao chegar na Associação não nutria qualquer expectativa quanto àquele espaço que, para mim, seria apenas onde passaria o tempo esperando para realizar as entrevistas. No entanto, demorou pouco para que eu percebesse que seria ali que ocorreriam as mais instigantes conversas com aquelas mulheres. A Associação, fundada na cidade de São Paulo há mais de trinta anos por pais de pessoas com deficiência funcionários de uma importante instituição financeira do país, atua em Porto Alegre desde 1999. A seccional do Rio Grande do Sul é uma das treze que hoje funcionam em diferentes estados atendendo primeiramente apenas funcionários do banco e depois expandindo sua atuação para a comunidade, que hoje compõe a maior parte das mais de duzentas famílias atendidas. A diretoria e os conselhos regionais e nacionais, entretanto, ainda são compostos por funcionários da instituição financeira, todos pais de pessoas com deficiência.

Por ser aberta à comunidade, a Associação atende pessoas com diferentes trajetórias e de diversos contextos socioeconômicos. As aulas de judô, capoeira, musicoterapia, arteterapia, teatro, natação e esportes são pagas, porém o valor mensal, entre sessenta e oitenta reais, a depender da atividade, é menor do que o de outras organizações privadas que oferecem serviços semelhantes. Além disso, são muitas as famílias que contam com bolsas socioeconômicas e pagam valores reduzidos ou são isentos da taxa mensal. Para além das distinções socioeconômicas entre as famílias, a Associação recebe alunos que, embora estejam dentro daquilo que se convencionou chamar de deficiência intelectual, diferem quanto aos seus modos de comunicação, locomoção e compreensão.

Algumas particularidades foram significativas para a centralidade que a sala de espera ganhou em meu trabalho de campo. Em primeiro lugar, semana após semana, as mesmas pessoas frequentavam o local, o que fez com que se criasse um sentimento de camaradagem e cumplicidade entre elas e, uma vez que eu também me tornei figura cativa naquele dia e horário, entre nós. Muitas, inclusive, já se conheciam de outras organizações ou escolas frequentadas por seus filhos. Igualmente importante é o fato de seus filhos estarem ali para realizar atividades lúdicas, das quais gostavam de participar. Nisso, a sala era bastante diferente das salas de espera de médicos ou hospitais, por exemplo, em que as pessoas se encontram em um momento de limiaridade antes de se tornarem pacientes e darem início ou continuidade a tratamentos cujos resultados são muitas vezes incertos (Mattingly, 2011; Tanner, 2002TANNER, Laura E. Bodies in Waiting: Representations of Medical Waiting Rooms in Contemporary American Fiction. American Literary History, v. 14, n. 1, 2002, pp.115-130.; Ticktin, 2013TICKTIN, Miriam. The Waiting Room. Somatosphere, 2013 [http://somatosphere.net/2013/the-waiting-room.html/ - acesso em: 05 abr. 2023].
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). Ainda assim, aquele era um tempo de espera. Um tempo ocioso em que não havia muito mais o que fazer senão conversar. Todos esses aspectos conferiam um tom bastante descontraído à sala.

A Associação fica no último andar de um prédio comercial cujos outros treze andares são ocupados pela instituição financeira. Eu era sempre uma das primeiras a chegar à Associação, por volta da uma e meia da tarde. À época, oito pessoas participavam da primeira turma de musicoterapia e era comum que algumas delas chegassem atrasadas e correndo. A segunda turma da mesma atividade tinha início às três horas e contava com a participação de sete pessoas. Essas eram as mães com quem eu menos conversava, pois costumavam sair para resolver coisas na rua ou sentarem-se na área em que a interação não era comum. Grande parte dos participantes da primeira turma de música fazia a aula de judô. Por isso, entre as três e três e meia da tarde era o período de maior movimentação na sala, com pessoas andando de um lado para o outro para vestir seus quimonos no banheiro e conversando enquanto a aula não começava.

Apesar de serem conectadas, a sala contava com dois espaços, um com cerca de quinze cadeiras dispostas em círculo ao redor de uma mesa de centro e um pequeno corredor com cerca de cinco cadeiras em frente à sala da administração. As mães que se sentavam na área das cadeiras são as que participam das conversas. Aquelas que se sentavam nas cadeiras mais distantes ou dentro da sala da administração passavam o tempo fazendo crochê, mexendo no celular ou lendo livros e revistas que traziam de casa. Os profissionais, a gerente regional, uma assistente social, uma auxiliar administrativa e um gerente de esportes apareciam diversas vezes durante a tarde para conversar conosco. As mães têm acesso livre à sala da administração e entram ali com frequência para fazer perguntas, efetuar o pagamento das mensalidades ou apenas conversar. Apesar de estarem em seu horário de trabalho e com demandas administrativas para resolver, os funcionários sempre as atendiam.

Apesar de todos, com exceção de três dos participantes das atividades, terem mais de dezoito anos, apenas dois costumavam ir até o local sem acompanhantes. Durante três meses, um jovem que fazia aula de judô veio acompanhado por seu cuidador, e um menino de doze anos que fazia aula de musicoterapia era frequentemente trazido por seu pai. De resto, a sala de espera era majoritariamente feminina, composta por mães, avós, uma tia e uma antropóloga. Como a Associação fica no centro da cidade, as mães aproveitavam o tempo de aula dos filhos para fazer compras, pagar contas, resolver burocracias ou encontrar pessoas. Era comum que chegassem carregando inúmeras sacolas com as compras que fizeram no Mercado Público ou em outras lojas do centro. Algumas traziam também frutas que colhiam em seus quintais para distribuir ou produtos que vendiam para complementar a renda da casa.

Aos poucos, passei a fazer parte daquele tempo-espaço. É impossível dizer o quanto minha presença, que todas sabiam ter como propósito a pesquisa sobre deficiência, teve influência sobre o modo como as conversas se davam. Já na primeira tarde, as mães organizaram um calendário das entrevistas que eu viria a realizar sempre na sala de arteterapia com uma mãe de cada vez. Este foi cumprido com certa flexibilidade, pois, em alguns dias, quando a conversa estava boa do lado de fora, concordamos em deixar a entrevista gravada para depois. Como foram muitos os assuntos que vinham à tona nesses momentos, as entrevistas acabaram sendo a oportunidade que as mães tinham para narrar sua vida de modo mais linear e com mais detalhes. Se no começo era minha presença que suscitava perguntas, com o passar das semanas eram minhas ausências que precisavam ser justificadas.

Na sala de espera, boa parte do tempo era preenchida por conversas sobre os filhos, suas rotinas, direitos de pessoas com deficiência, dicas sobre como acessar benefícios e outros serviços disponíveis. Mas se engana quem pensa que aquele era o único assunto naquelas tardes. Conversávamos sobre relacionamentos, política, economia, novelas, programas de televisão, filmes, e assim passávamos o tempo. Como disse, para além das tantas reflexões suscitadas por essas interações, as horas que passei ali foram cruciais para que eu me atentasse para a dimensão temporal da experiência de minhas interlocutoras e para o quanto a espera se fez e se faz presente em seu cotidiano.

Espera, tempo do cuidado e tempo aleijado

O ato de esperar constitui parte fundamental do cotidiano de minhas interlocutoras. Sentada por mais de três horas junto a elas semana após semana, passei a refletir sobre o que essas esperas nos dizem sobre as práticas de cuidado. Como coloca o sociólogo Javier Ayuero (2011) a partir de pesquisa realizada junto a solicitantes de benefícios governamentais na Argentina, a espera é uma experiência com três características centrais. Em primeiro lugar, ela é uma experiência modal no sentido de que certas pessoas, certos corpos, têm que esperar mais e por mais coisas ao longo de suas vidas. Ela é também relacional, pois na sala de espera as pessoas “criam ou mobilizam um conjunto de relações ou redes que permitem que passem longas horas lá” (Ayuero, 2011:14), e ativa, visto que as pessoas fazem coisas e encontram atividades para passar o seu tempo enquanto esperam. A princípio, todas nós temos que esperar por algo ou alguém em algum momento de nossas vidas, o que torna a espera algo universal. No entanto, ela se dá de modo bastante distinto para cada um quanto à frequência, à duração e à própria maneira com que ocorre, e por isso reproduz as dinâmicas de poder nas relações (Bissel, 2007; Bournes; Mitchell, 2002BOURNES, Debra A.; MITCHELL, Gail J. Waiting: The experience of persons in a critical care waiting room. Research in Nursing & Health, v. 25, Issue 1, 2002, pp.58-67.; Vianna, 2015VIANNA, Adriana. Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, Patricia et al. (org.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, 2015, pp.405-418.; Ferreira, 2019FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita. Notas sobre a rotina: tempo, sofrimento e banalidade do poder na gestão de casos de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro. Revista Antropolítica, n. 47, 2019, pp.118-142.). Uma vez que a espera é considerada um desperdício de tempo que poderia estar sendo usado para algo “produtivo”, aqueles que são feitos esperar com mais frequência são os mesmos cujas vidas são consideradas menos importantes por serem menos produtivas (Foster, 2016FOSTER, Rebecca. “Doing the Wait”: An exploration into the waiting experiences of prisoners’ families. Time & Society, 0(0), 2016, pp.1-19.). A relação entre o tempo e a produtividade é essencial para pensarmos sobre a espera como um fazer constante das práticas de cuidado e como ela se relaciona à invisibilidade e desvalorização dessas práticas e, por conseguinte, das pessoas que delas fazem parte, como minhas interlocutoras e seus filhos adultos com deficiência intelectual.

Ao escrever sobre a futuridade tecnocientífica característica de nossa época, Maria Puig de la Bellacasa (2017)PUIG DE LA BELLACASA, Maria. Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press, 2017. a situa dentro de um regime de temporalidade característico do paradigma moderno em que o futuro é associado ao progresso e ao desenvolvimento. Uma ideia de progresso ligada à noção de produtividade orienta o modo como apreendemos o tempo, e a primazia que essa ficção de um tempo linear em direção a um futuro sempre mais desenvolvido ganha entre as políticas de temporalidade acaba por invisibilizar temporalidades alternativas que a desafiam (Adams; Murphy; Clarke, 2009; Bellacasa, 2017). Ocorre que o tempo, segundo Bellacasa (2017:184, tradução nossa), é algo feito na prática por meio de arranjos sociotécnicos, uma experiência “vivida, corporificada, histórica e socialmente situada” que desafia essa ilusão de uma temporalidade linear. As temporalidades dissidentes são particularmente importantes para se compreender essa dimensão. O tempo do cuidado é o tempo dessas temporalidades dissidentes, que não se enquadram no regime dominante de temporalidade voltada à produtividade e futuridade (Bellacasa, 2017).

Ao longo de minha pesquisa de campo, ouvi de muitas mães em entrevistas ou em eventos de que participei que sua experiência com a deficiência dos filhos fez com que passassem a viver um dia de cada vez, sem se preocupar com o futuro. Ainda assim, muitas de suas atividades estão voltadas para um futuro em potencial em que a vida de seu filho será melhor do que é no presente ou do que viria a ser sem que essas práticas fossem realizadas naquele momento. Ocorre que, nas práticas de cuidado, pensar demasiadamente sobre o futuro, mesmo quando ele está no horizonte, pode fazer com que deixemos de performar aquilo que precisa ser feito nesse momento e que é essencial para a manutenção ou reparação da vida. Por serem imprevisíveis, situacionais, contingentes, isto é, não serem transponíveis de uma situação a outra (Mol, 2008), as práticas de cuidado requerem um foco no presente, nas necessidades atuais e imediatas, naquilo que deve ser feito agora (Bellacasa, 2017). Isso não significa, como coloca Bellacasa (2017:207, tradução nossa), “purificar o tempo do cuidado”, mas sim complexificar o modo como pensamos sobre elas, afinal se a “a temporalidade futura, urgente, rápida suspende e comprime o presente”, poderíamos dizer que “o tempo do cuidado suspende o futuro e distende o presente, tornando-o mais denso por meio de uma miríade de demandas multilaterais”. É por essa razão que a autora propõe que uma reflexão sobre a temporalidade do cuidado nos permita questionar “os diferentes modos de ‘fazer o tempo’ ao focar em experiências que são invisibilizadas ou marginalizadas enquanto ‘não produtivas’ no dominante ímpeto futurístico” (Bellacasa, 2017:177, tradução nossa).

A espera, como aprendi com minhas interlocutoras, é uma prática constitutiva do tempo do cuidado. Muitas vezes, cuidar não requer outra coisa senão estar ali, à espera de que algo aconteça, de que se seja solicitado, do que pode vir a acontecer ou não (Engel, 2013ENGEL, Cíntia Liara. Doença de Alzheimer e Cuidado Familiar. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2013.). Cuidar é dispor de seu tempo para o outro – o que, por sua vez, pressupõe uma adequação ao tempo do outro e o “fazer o tempo” (make time) para atender suas necessidades (Bellacasa, 2017). Ainda assim, esperar é muitas vezes tido como uma “perda de tempo”, um tempo em que não se está produzindo nada ou sequer trabalhando para essa produção futura. É por essa razão que, ao refletir sobre e a partir da espera, proponho uma discussão que chame atenção para a necessidade de que temporalidades alternativas façam parte do modo como pensamos sobre e medimos o tempo, sob pena de que aqueles cujas vidas são marcadas por práticas que desafiam essas noções de um “tempo produtivo” sigam sendo marginalizadas.

Essa dimensão se torna ainda mais importante quando pensamos que, para além do tempo do cuidado, a vida de minhas interlocutoras é também atravessada por aquilo que pesquisadores dos estudos sobre a deficiência chamam de Crip Time, conceito traduzido pelo sociólogo Marco Gavério (2016)GAVÉRIO, Marco. A. Resenha de Feminist, Queer, Crip. Alison Kafer. Revista Florestan Fernandes, ano 3, n. 1, 2016, pp.165 -173. como Tempo Aleijado. Em diálogo com a noção de Queer Time, o termo foi primeiramente utilizado por Irv Zola e Carol Gill para designar uma característica comum a muitas pessoas com deficiência que precisam de mais tempo para realizar certas atividades. Essa necessidade pode ser decorrente tanto das especificidades mentais e corporais de cada pessoa quanto das barreiras capacitistas que se apresentam no cotidiano de um mundo que não é preparado para modos outros de habitá-lo (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.). De modo semelhante ao que se dá no tempo do cuidado, o tempo aleijado desafia esse ideal de um tempo produtivo, em que tudo deve ser feito o mais rapidamente possível para que se possa ter o maior ganho com cada atividade.

Reconhecer o tempo aleijado como uma dessas temporalidades dissidentes que coexistem com as temporalidades dominantes é fundamental. Contudo, o simples reconhecimento dessas temporalidades, embora imprescindível, não é o suficiente. Refletir sobre esses outros modos de fazer o tempo requer que os regimes dominantes de temporalidade sejam tensionados e questionados. O objetivo não pode ser adequar o tempo do cuidado ou o tempo aleijado a esse tempo produtivo, mas o contrário. Neste sentido, nos lembra Kafer (2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.:25, tradução nossa) que “ao invés de fazer com que corpos e mentes deficientes se dobrem para seguir o cronômetro, o tempo aleijado dobra o relógio para que siga os corpos e mentes deficientes”. É a partir do tempo do cuidado e do tempo aleijado que proponho pensar sobre a espera enquanto marca dessas temporalidades dissidentes e que desafiam um ideal de produtividade. Não para dissociá-la de uma ideia de futuro, mas para refletir sobre como ela atua em relação a essas expectativas de um futuro que desde o princípio desafia noções hegemônicas do que uma vida produtiva deve ser. Mesmo porque a espera, na língua portuguesa, é mais do que o ato de esperar por alguém: “esperar”, enquanto verbo intransitivo significa ter esperança, estar na expectativa de que algo vá acontecer.

Como as principais responsáveis pelo cuidado de seus filhos, coube às minhas interlocutoras traçar os caminhos que as levaram até os serviços e atividades existentes, os quais lhes eram pouco familiares. A descoberta destes espaços já lhes tomava tempo e, à medida que os encontravam, cabia a elas levar e buscar os filhos tal qual ainda o faziam na Associação. Com isso, vinham as por vezes longas esperas pelo atendimento. Para as mães de adultos com quem trabalhei, estes percursos não eram mais uma novidade e tampouco o eram as esperas que deles advém. Por terem as vidas tão atravessadas por essa experiência, as mães foram aos poucos ressignificando suas trajetórias e dando novos sentidos ao que passaram e passam junto aos filhos. O tempo, afinal de contas, trabalha também em suas narrativas (Das, 2007). A experiência de Dona Eleonora e seu filho é significativa neste sentido, pois, ao longo dos seus trinta e nove anos como mãe de Gabriel, ela aprendera a navegar por uma rede de serviços nova para ela. Grande parte de seus oitenta anos foi marcada por essa busca, por tentativas e erros na esperança de encontrar algum local que Gabriel gostasse e que lhe ajudasse. Trago aqui sua narrativa por compreender que ela demonstra como, em suas tantas idas e vindas com o filho, ela foi aprendendo a fazer o tempo para o cuidado e a adaptar-se aos tempos do filho, ao passo que, ao longo dos anos, o tempo trabalhou na sua relação e no modo como ela hoje narra sua história.

Fazendo o tempo enquanto o tempo trabalha: as idas e vindas de Dona Eleonora

Dona Eleonora era sempre uma das mais animadas nas tardes de quinta-feira e não costumava faltar. Pequena, parda, com os cabelos curtos e grisalhos, participa ativamente de todas as conversas e festas. Eleonora casou-se cedo com o primeiro marido e ainda jovem era mãe de três filhas. Aos vinte e três anos, ficou viúva e logo conheceu seu segundo e atual marido com quem teve cinco filhos. Gabriel, o único que conheci, nasceu em 1981 e é muito mais novo que os seus sete irmãos. Logo após seu nascimento, Dona Eleonora foi informada por uma enfermeira sobre a deficiência do filho:

teu filho tem problema. Vamos te explicar”, disse-me a enfermeira. E eu nunca imaginei na minha cabeça que era na ... que era na mente, né? Na cabeça, né? Quando ele chegou eu fui examinar ele, pelei ele, olhei as pernas, tudo direitinho. Olhei os braços, tudo direitinho. Eu falei: “aonde que é, meu Deus?” Aí que eu falei. A enfermeira disse: “Não. Ele é normal, só a mente dele que é atrasada (Trecho de entrevista gravada, abril de 2018).

Ela se referia ao fato de Gabriel ser pessoa com síndrome de Down, algo sobre o que Dona Eleonora sequer ouvira falar até aquele momento. Quando perguntei se tinha sido uma surpresa, ela respondeu que não. Apesar de não esperar ter um filho “especial”, termo por ela utilizado, Dona Eleonora afirmou ser “uma pessoa que aceita tudo” e que todos os outros filhos e o marido aceitaram Gabriel muito bem. Surpresa com a colocação, indaguei: “ah¸ então não foi um drama?”. Com isso, sua resposta mudou um pouco: ela disse que procurou uma psicóloga porque não sabia lidar com as diferenças do filho, que até os dois anos falava igual as demais crianças de sua idade, mas aos poucos foi falando cada vez menos, até parar completamente, aos quatro anos. A busca por ajuda, portanto, não se deu no momento do diagnóstico, mas sim quando o filho deixou de atingir os marcos de desenvolvimento que eram dele esperados.

Apesar de ser mãe de sete filhos antes de Gabriel, com o mais novo as coisas eram diferentes, já que, como me disse em meio a risadas, “eu tratei os outros tipo uma, como se planta uma batata, né?! Só vai crescendo e vai saindo as coisas. Aí com ele mudou toda rotina”. Ao explicar que mudança seria essa, Dona Eleonora mencionou dois aspectos importantes. Primeiro, o fato de que o filho dependia mais dela, demandando mais atenção do que os demais. Segundo porque os tratamentos do filho causaram uma mudança significativa na rotina de sua casa. O modo como criou o filho mais novo foi bastante diferente do modo como criou os demais. Segundo a psicóloga que a atendia à época de nossa entrevista, a mãe via Gabriel como “uma sacola que eu tenho que tá carregando pra não esquecer.”

A ideia apresentada pela psicóloga de que o filho seria como uma sacola é resultado de uma vida inteira o acompanhando a diversos locais em busca de educação, tratamento ou atividades recreativas. Mesmo contando com a ajuda das filhas ao longo da vida de Gabriel, foi a mãe que assumiu a maior parte da responsabilidade por encontrar os serviços e, mais tarde, por levar o jovem até lá. Eleonora trabalhou como auxiliar de nutrição em um hospital infantil até o filho ter sete anos de idade, quando ela sofreu um grave acidente a caminho do trabalho, ficou mais de um mês hospitalizada correndo risco de vida e não pode mais trabalhar. Com isso, passou a se dedicar às tarefas domésticas em tempo integral, inclusive auxiliando suas filhas na criação de alguns de seus netos para que elas pudessem trabalhar, e passou a ser, de fato, a única responsável por levar e trazer o filho a todas as suas atividades.

Dona Eleonora mora há alguns anos apenas com Gabriel e com o marido, então com 86 anos de idade. Gabriel não fala, comunica-se por meio de gestos e, apesar de inúmeras tentativas junto a fonoaudiólogos e psicólogos, a mãe nunca soube a razão pela qual ele decidira parar de falar. Falando sobre a rotina do filho, disse que ele frequentava a Associação duas vezes por semana para fazer aulas de música, judô e capoeira. Nos outros dias, ficava em casa, onde, segundo Dona Eleonora, passava a maior parte do tempo vendo televisão ou em seu quarto. O tempo ocioso contrasta com o que me disse ter sido uma vida marcada por inúmeras atividades e tratamentos.

Aos oito meses, Gabriel começou tratamento de Estimulação Precoce em um centro de referência da cidade, algo que, segundo sua mãe, permitiu que ele caminhasse com dois anos e não quatro como era a previsão dos médicos. Anos mais tarde, passou a cursar uma Escola Estadual de Educação Especial, onde muitos dos filhos de minhas interlocutoras estudaram ou ainda estudam. Ao ficar mais velho, Gabriel teria perdido a vontade de ir à escola e começou a frequentar um centro coordenado pelo governo estadual que oferece uma série de atividades ocupacionais para adultos com deficiência intelectual. Lá Dona Eleonora ficou sabendo de um espaço coordenado por senhoras que Gabriel também passou a fazer parte. Para poder frequentar esses lugares, Gabriel tinha que ser levado e buscado por alguém e, como disse Dona Eleonora, aquela “foi uma longa jornada. Todos esses trajetos eu passei com ele”.

Gabriel frequentou psicólogos e psiquiatras desde criança, é acompanhado por um neurologista e faz uso de medicamentos. A mãe sempre foi responsável por administrar os remédios do filho, regulando as doses e conversando com médicos para que a dosagem fosse adequada e não causasse efeitos colaterais, como deixá-lo muito letárgico. No posto de saúde em que fez tratamento médico durante muitos anos, os profissionais encaminharam Gabriel para um programa voltado a pessoas com deficiência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que o jovem frequentou por quase uma década. Foi lá que outras mães lhe falaram sobre a Associação. Naquela época, Dona Eleonora estava a ponto de internar o filho em um hospital psiquiátrico em razão de constantes episódios em que ele agredia fisicamente à mãe, outros familiares, professoras e colegas. Ao começar a ter aulas de capoeira e de judô na Associação, Gabriel se acalmou e aprendeu a controlar sua raiva e frustração. Por essa razão, a mãe se diz muito grata aos professores desses esportes que, segundo ela, mudaram a vida do filho.

Quando perguntei qual havia sido a sua maior dificuldade ao longo da vida, Dona Eleonora respondeu rapidamente: o dinheiro. Ela e o marido são aposentados e sua renda mensal não chega a três salários mínimos. Ela tentou conseguir o Benefício de Prestação Continuada4 4 O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi aprovado em 1996 a fim de garantir o recebimento de um salário mínimo por mês para idosos e pessoas com deficiência que não possam exercer atividade laboral e cuja renda familiar não ultrapasse ¼ de salário mínimo per capita. Em 2020, foi aprovada a Lei n. 13.981, de 23 de março de 2020, que aumentou o limite da renda per capita para concessão do benefício para meio salário mínimo. Ele não está condicionado a contribuições prévias ao INSS, podendo ser recebido tanto por adultos com deficiência quanto por crianças, mediante perícia técnica realizada a fim de determinar tanto a “incapacidade laboral” quanto a renda familiar e condição de vulnerabilidade social. Foi a partir da ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal que ela se tornou mais abrangente, mais que dobrando o número de pessoas com deficiência beneficiados entre os anos de 2002 e 2018, configurando-se como a principal fonte de renda para muitas famílias de pessoas com deficiência. Sobre a importância do BPC para famílias de pessoas com deficiência, ver também Matos (2016); Fonseca; Fietz (2018); Matos; Quadros; Silva (2019). para o filho algumas vezes, mas sempre sem sucesso em razão da renda dos pais. Quanto ao futuro, disse que a única preocupação que tinha era de “morrer e deixar ele na mão dos outros”. Apesar de saber que as filhas e noras não deixariam Gabriel desassistido, a mãe se preocupa com o tipo de cuidado que seria dispensado ao filho. Afirmou que não pensa muito sobre isso para não ficar com a cabeça “muito enrolada”, mas que se preocupa “porque outro não vai ter a paciência de espera, aquela coisa toda, aquela ‘manha’ toda com ele”.

Com quase oitenta anos à época de nossa entrevista, Dona Eleonora não se dizia cansada pelas idas e vindas com o filho. Ao contrário, afirmava que nunca gostou de ficar em casa sem ter nada para fazer e que as necessidades de Gabriel permitiam que ela tivesse uma rotina agitada e conhecesse pessoas diferentes. Por isso, ela gosta muito de ir até a Associação. É uma das mais participativas nas atividades promovidas e é sempre falante na sala de espera. Tanto que, já ao final de nossa conversa, disse: “Foi muita andança, né? Já gastei muita sola”, e acrescentou que “Deus escreve certo por linhas tortas. É porque pra mim, assim, parece que me deu vida. Apesar de não ser do jeito que eu queria, né? Mas pelo menos não fico só dentro de casa, cuidando de neto, cuidando de tudo”. Após quase quarenta anos de caminhada junto a Gabriel, Dona Eleonora percebia as atividades do filho como uma oportunidade para que ela cultive amizades, saia de casa, interaja com outras pessoas e mantenha uma rotina cheia, como sempre gostou.

A história de Eleonora e Gabriel fala sobre as diferentes formas que a espera ganha ao longo do tempo. A chegada do filho mais novo com síndrome de Down, algo que a mãe desconhecia por completo, fez com ela e sua família tivessem que ajustar e reconfigurar suas rotinas para dar conta das atividades a que Gabriel teve acesso desde a primeira infância. Eleonora foi aos poucos descobrindo os caminhos a percorrer ao conversar com outras mães ou com os profissionais que atendiam seu filho, e, com isso, foi traçando o seu próprio itinerário, buscando aquilo que Gabriel gostava mais ou que o deixava mais feliz. Os resultados foram sentidos quando o filho andou com dois anos e não com quatro ou quando não precisou ser internado ao aprender a controlar a agressividade nas aulas de capoeira e judô. Para além dos benefícios que o filho teve, hoje a mãe vê esses espaços como uma oportunidade para que ela desenvolva sua vida social. Destaco aqui esses três momentos – o de não saber o que esperar em razão da deficiência, a busca por atividades e serviços que levavam a longos momentos de espera e a produção de novas relações nesses espaços – por compreender que eles são comuns a minhas interlocutoras e marcam de modo significativo a relação entre o tempo do cuidado, o tempo aleijado e a espera, bem como demonstram como o tempo, para além de algo que é feito, também trabalha nessas relações.

O que esperar: “descobrindo” a deficiência, refazendo o tempo e reconfigurando expectativas

Por trabalhar com mães de adultos, cujos filhos tinham à época entre dezoito e cinquenta anos de idade, o momento em que teriam “descoberto” a deficiência dos filhos se dera anos antes, e o tempo já trabalhara no modo como elas narravam suas histórias (Das, 2007DAS, Veena. Life and Words: Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.). Não por acaso, Dona Eleonora primeiro afirmou que a deficiência de Gabriel não tinha lhe causado estranhamento, para só depois explicar que, na verdade, buscara ajuda profissional para lidar com os diferentes tempos do filho, que demorou mais para andar do que a maior parte das pessoas e parou de falar por completo aos quatro anos de idade, quando muitas crianças estão desenvolvendo o seu vocabulário. Reconfigurar as expectativas era algo com que minhas interlocutoras já haviam se acostumado. Ainda assim, era comum ouvir longas narrativas sobre o momento da “descoberta” da deficiência, que remetiam tanto ao diagnóstico quanto a um processo contínuo de percepção das diferenças dos filhos que não atingiam marcos de desenvolvimento esperados para bebês ou crianças de sua idade. Não pretendo, obviamente, generalizar experiências tão pessoais e distintas. Chamo atenção, contudo, para o fato de que, para minhas interlocutoras, a descoberta se deu logo após o parto ou ainda na primeira infância. Isso, segundo a mãe de um jovem autista de dezoito anos, fez com que sua expectativa de normalidade durasse pouco, o que para ela era algo positivo, pois quanto mais tempo convivesse com essa expectativa, mais dura seria a constatação de que ela não se configuraria.

Ao trabalhar com a ampla categoria de “deficiência intelectual”, deparei-me com as mais diferentes situações e diagnósticos. Partindo da ideia de que o diagnóstico é uma forma de comunicação que “rotula, define e prevê e, ao fazê-lo, ajuda a constituir e legitimar a realidade que discerne” (Rosenberg, 2002ROSENBERG, Charles E. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. The Milbank Quartely, v. 80, n. 2, 2002, pp.237-259.:240), o diagnóstico recebido – seja de síndrome de Down, de autismo ou o corriqueiro “retardo mental”, por exemplo – faz com que sejam acionadas uma série de imaginários sobre o que seria viver sob cada um deles, isto é, ideias pré-concebidas que influenciam aquilo que os pais passam a esperar de e para seus filhos no futuro, de modo que diferentes diagnósticos podem suscitar diferentes expectativas baseadas naquilo que se conhece sobre a condição específica. Além disso, os diferentes diagnósticos faziam com que sua trajetória terapêutica fosse bastante diferente em termos de outras comorbidades que podiam acompanhar ou não a deficiência e quais especialistas deveriam ser consultados ou até mesmo quais os suportes e cuidados são necessários em seu dia a dia.

Não é raro, contudo, que as mães narrem esse processo de descoberta como sendo um em que os sentimentos de medo, apreensão, decepção ou tristeza tomam conta. Foi esse o relato de Cintia, uma mulher branca com pouco mais de cinquenta anos, mãe de um jovem de dezoito anos com síndrome de Down. Quando engravidou, seu médico optou por não realizar o exame pré-natal e ela “descobriu” a deficiência do filho logo após seu nascimento. Apesar de trabalhar como professora da rede municipal em uma escola onde os processos de inclusão de pessoas com deficiência estavam iniciando, Cíntia disse que sentiu uma grande decepção ao receber a notícia. O filho fora uma “produção independente”, e ela “teve que reunir muita coragem para ser mãe sozinha. Eu achava que só ser mãe sozinha já era um grande desafio, eu não contava com o desafio a mais”.

O desafio a mais a que Cintia se referia advém, dentre outras coisas, do desconhecido, da desinformação em relação à deficiência e da quebra de uma expectativa de normalidade. A antropóloga estadunidense Gail Landsman (2009)LANDSMAN, Gail H. Reconstructing Motherhood and Disability in the Age of “Perfect” Babies. New York, London, Routledge, 2009., em sua pesquisa realizada com mães de crianças com deficiência ou doenças graves no estado de Nova Iorque, aponta que, durante a gravidez, a possibilidade de ter um filho deficiente é “o Outro” em relação ao desejado e imaginado filho “normal” (Landsman, 2009LANDSMAN, Gail H. Reconstructing Motherhood and Disability in the Age of “Perfect” Babies. New York, London, Routledge, 2009.). Um Outro que de repente se torna um membro da família. Isso faz com que, como mencionado, as expectativas e desejos tenham que ser reajustados diante do inesperado. Como aponta Landsman (2009)LANDSMAN, Gail H. Reconstructing Motherhood and Disability in the Age of “Perfect” Babies. New York, London, Routledge, 2009., é comum que a descoberta da deficiência seja descrita como um momento de luto causado pela perda da idealizada “criança perfeita” e pelos tantos ajustes que essa nova realidade impõe. Uma perda daquilo que se imaginou como sendo a melhor vida possível ou ainda como a única vida possível.

O fato de as narrativas sobre a deficiência serem tão fortemente marcadas por discursos do campo biomédico e como uma categoria auto evidente, universal e circunscrita ao corpo com lesão, resumindo-a a uma questão a ser tratada pelo campo médico e esvaziada de seu caráter político e relacional (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.) é essencial para que esse sentimento de perda se desenvolva. Afinal, nessa perspectiva individualizada, a deficiência é compreendida enquanto um problema e, mais do que isso, um problema individual que deve ser evitado sempre que possível. Com isso, os corpos e mentes marcados por determinadas diferenças são patologizados e negativizados e as distintas experiências, possibilidades e positividades são apagadas, restando espaço apenas para as angústias e medos (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.).

Esse modelo já foi amplamente contestado por ativistas do movimento social e teóricos dos estudos sobre deficiência desde os anos 19705 5 Para essas discussões no Brasil, ver Lopes (2020), Simões (2019), Aydos (2017), Mello (2016), Diniz (2007). . No entanto, a maioria das mães com quem convivi na Associação não foram diretamente expostas aos movimentos sociais e são apenas tangenciadas por discussões que abordam a deficiência como uma categoria político-relacional, que depende da interação entre o ambiente e o corpo com lesão para que se constitua (Ginsburg; Rapp, 2020GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. Disability/Anthropology: Rethinking the Parameters of the Human. Cultural Anthropology, v. 61, supplement 21, 2020., 2013; Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.; Mello; Nueberg, 2012). Digo isso para salientar que o desconhecimento sobre as vidas de pessoas com deficiência, combinado com o distanciamento de discursos sobre o caráter social, político e relacional da deficiência, potencializa a sensação de tristeza e medo relatada por minhas interlocutoras. Atravessadas pela lógica capacitista que estrutura nossa sociedade, minhas interlocutoras compartilham da presunção de que ninguém gostaria de ter um filho com deficiência (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.), o que torna mais difícil imaginar um novo futuro possível e reconfigurar as expectativas familiares tão marcadas por modelos dominantes de como as coisas deveriam ser. O não reconhecimento do tempo aleijado tem um papel central nessa sensação de luto e tristeza, uma vez que o seu uso pressupõe a compreensão e aceitação de que “as pessoas com deficiência talvez necessitem mais tempo para fazer algo ou chegar em algum lugar” (Kafer, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis, Indiana University Press, 2013.:25, tradução nossa). Como estes outros tempos para realizar atividades não são valorizados, aqueles que os habitam seguem sendo considerados em falta com aquilo que permitiria que alcançassem o ideal daquele tempo produtivo linear.

À medida que os filhos crescem, o modo de se relacionarem com a deficiência vai se modificando. Algumas mães frisam que, apesar do tempo, a sensação de desconforto causada é perene. Outras lembram que por vezes desejam que os filhos lhe dessem netos, fizessem faculdade ou trabalhassem, mas que já se “acostumaram” com a ideia de que grande parte dessas coisas não irão acontecer. Essas mães expressam a dificuldade que grande parte dos pais têm ao depararem-se com as características próprias de seus filhos, deficientes e não-deficientes, que desafiam aquilo que era esperado. Ao falarmos da deficiência intelectual, essa dificuldade é potencializada por todos os pressupostos de incapacidade que acompanham a condição em sociedades estruturadas por uma lógica capacitista de hierarquização de corpos em razão de sua capacidade (Mello, 2016; Campbell, 2009).

Chamo atenção para como as histórias de minhas interlocutoras quanto ao processo de constatação da deficiência dos filhos envolvem longos caminhos a serem percorridos e para os quais todas tiveram que fazer tempo em meio a rotinas já atribuladas. Nesse momento, suas práticas de cuidado se voltam para aquilo que julgam ser necessário naquele momento para garantir a melhor vida possível para seus filhos, o que muitas vezes as afasta de trabalhos remunerados ou de outras atividades consideradas “produtivas”. Para muitas delas, cuidar passa a ser um trabalho em tempo integral. Reconhecer que os tempos dos filhos serão outros e que a partir de então também o seu tempo será diferentemente ocupado por essas atividades é algo com o que devem se acostumar e que faz parte desse processo de constatação da deficiência. Um processo contínuo e que se modifica à medida que o futuro chega, e, com ele, novas e importantes questões se apresentam.

Tal qual Dona Eleonora, a maioria dessas mulheres falam hoje de sua trajetória como uma de muitas andanças e dificuldades, mas não de pesar. Ao contarem suas histórias, os problemas que surgiram durante a criação de seus filhos com deficiência misturam-se com aqueles decorrentes de situações vividas com os filhos não-deficientes. Não se trata, é claro, de apagar as especificidades da deficiência, mas sim chamar atenção para como os preconceitos, os estereótipos, o desconhecimento e o senso comum sobre o que a deficiência intelectual é informam o modo como essas mulheres reagem a essa “descoberta” e como, com o passar do tempo, vão escrevendo suas próprias histórias e narrativas dentro dessa nova realidade que lhes é apresentada. Dentro destas novas rotinas, acostumaram-se aos tantos momentos de espera pelos filhos.

Ao esperar pelos filhos, elas esperam que os tratamentos e atividades proporcionem a estes uma vida melhor – é esse o sentido que tem “esperar” enquanto verbo intransitivo; e a dimensão da esperança passa a ser fundamental. Se, como aponta Freire (1997)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997., “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã”, no dia a dia de minhas interlocutoras a criação da esperança se faz mediante algo que eu, em um primeiro momento, percebi como sendo longas doses de “espera vã”. Afinal, eu, uma mulher branca, de classe-média, não-mãe e sem deficiência, estou dentre aqueles corpos menos propensos a serem feitos esperar. No entanto, muito era produzido naquelas esperas, e a esperança, o esperar por um futuro melhor, que torna as tantas esperas pelos filhos toleráveis, era uma dentre essas produções.

Produzindo esperança na espera

Paulo Freire (1997)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. entende a esperança como uma necessidade ontológica e um ato político que deve ser ancorado na prática e no empenho para realizar o desejo de um futuro imaginado. Ela é um sonhar por futuros melhores, mas um “sonhar ativo”, uma ação que visa transformar o presente e construir o futuro enquanto reflete sobre o passado (Freire, 1997FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.). A vida marcada pela busca por serviços médicos, terapêuticos, de lazer e educacionais para seus filhos é parte desse “sonhar ativo”, que por sua vez leva a constantes e sucessivas esperas. Já a antropóloga estadunidense Cheryl Mattingly (2010)MATTINGLY, Cheryl. The Paradox of Hope: Journeys Through a Clinical Borderland. Berkeley, University of California Press, 2010. sugere que a esperança é uma prática moral paradoxal, na medida em que exige que façamos algo no presente, na expectativa de um futuro por vir, e um projeto moral por definir o que significa ser uma “boa pessoa” ao mesmo tempo que nos lembra do que talvez nunca venhamos a ser.

Trabalhos recentes com mães de crianças com síndrome congênita do Zika no nordeste do país mostram que ainda recai sobre as mulheres a tarefa de “ir e vir” com os filhos desde pequenos na busca por tratamentos adequados. De modo semelhante ao que ocorreu com muitas de minhas interlocutoras, isso pode fazer com que elas tenham que deixar seus empregos, reconfigurar relações familiares no que diz respeito ao cuidado com outros filhos e passar longas horas de seu dia se deslocando de um lado para outro da cidade (Fleischer; Lima, 2020FLEISCHER, Soraya; LIMA, Flávia (org.). Micro: contribuições da antropologia. Brasília, Editora Athalaia, 2020.). Relacionando a trajetória dessas mães com a dimensão temporal do cuidado, a antropóloga Eliza K. Williamson (2018) destaca como em meio a tantas incertezas essas mulheres aprendem a “não esperar nada” ao mesmo tempo que cultivam ativamente a esperança de garantir que seus filhos tenham uma vida tão boa quanto possível através de tratamentos e terapias que possam auxiliar em seu desenvolvimento.

Argumento que, nesse “sonhar ativo”, o tempo tem um papel fundamental. Como demonstram Fleischer e Lima (2020)FLEISCHER, Soraya; LIMA, Flávia (org.). Micro: contribuições da antropologia. Brasília, Editora Athalaia, 2020. e Williamson (2018) em suas pesquisas, as ações dessas mães no presente são motivadas pela esperança de um futuro melhor, ainda que incerto. Não se trata, como disse, de uma ação para o futuro que suprima o presente em prol desse amanhã, tal qual na futuridade produtiva característica do capitalismo neoliberal com fortes raízes coloniais que se tornou o regime de temporalidade dominante em nossos tempos (Adams; Murphy; Clarke, 2009; Bellacasa, 2017). Na prática das minhas interlocutoras, o tempo do cuidado se faz presente cotidianamente e, neste, como afirmou Bellacasa (2017), a interação entre futuro, presente e passado se dá de outra maneira. Para essas mulheres, a produção da esperança passa por reconfigurar suas experiências temporais e reorganizar o tempo que dedicam a seus filhos nessa constante busca por tratamentos e serviços. Mesmo na infância, quando há a expectativa de que os tantos tratamentos e terapias possam fazer com que seus filhos atinjam marcos de desenvolvimento esperados – como andar, falar e escrever –, ou fazer com que eles sejam responsáveis por sua própria sobrevivência, a prática do cuidado possuí um fim em si mesma para além dessa futuridade. No caso da deficiência intelectual, essa é a fase da vida em que se dão as maiores “andanças”, seja pela busca de um diagnóstico ou por tratamentos e terapias que possam auxiliar seus filhos. A infância dos filhos é um período em que, como disse Dona Eleonora, gasta-se muita sola de sapato, o que é fruto também do modo como as políticas públicas e os serviços para pessoas com deficiência são majoritariamente voltados para a infância e a adolescência (Fietz, 2018), e, uma vez que as pessoas não estão mais em idade escolar, a rede parece sumir, fazendo com que agentes públicos e familiares reclamem que “para adultos não têm nada”.

Ao longo de minha pesquisa, fui interpelada por quase todas as mães com quem conversei com a reclamação de que não há serviços para adultos; ao mesmo tempo, era apresentada a uma lista de locais que, segundo elas, eu deveria conhecer por oferecerem tipos de serviços similares aos da Associação. Em um primeiro momento, pensei que a primeira colocação deveria ser uma dessas reclamações que acabamos fazendo de modo automático, mais pelo hábito de queixarmo-nos do que pela situação em si. No entanto, ao prestar mais atenção a esse paradoxo, pude perceber que ele revela que cabe a essas mães não apenas levar os filhos até esses serviços, mas de fato traçar essa rede que é pouco visibilizada. Eu mesma, antes de dar início a esta pesquisa, não tinha ideia do número de locais que oferecem atividades para pessoas com deficiência, um número de fato pequeno para a demanda, o que faz com que a busca seja mais difícil.

Além da pouca oferta, o fator financeiro é determinante para que essas famílias possam acessar as atividades. A Associação mostra-se atrativa para grande número de famílias justamente por ter preços considerados acessíveis para o tipo de serviço prestado, mas ainda assim é um valor considerado muito alto para grande parte das mulheres que ali frequentam. Isso sem falar em todas as outras que deixam de ir por essa questão. O dinheiro, como me disse Dona Eleonora, é um dos principais desafios para grande parte dessas famílias. Por ser o foco das políticas públicas, há mais serviços gratuitos – sejam ofertados pelo Estado ou por entidades conveniadas – para pessoas na infância e na adolescência, sendo as atividades para adultos, em sua maior parte, pagas.

É nesse sentido que o tempo também trabalha na relação dessas mulheres com o cuidado para com seus filhos. Por estar na sala de espera de um serviço cuja maioria dos assistidos são adultos, conheci mulheres que já haviam traçado essa rede, ou seja, que faziam parte de um circuito que fez com que fossem levadas àquele e a outros serviços. Como eu, muitas delas não sabiam da existência destes até serem informadas por outras mulheres com quem conversavam e que as aconselhavam sobre qual lugar o filho poderia gostar. Encontrar esses serviços era um trabalho em si, que toma tempo dessas mulheres e exige conhecer e se comunicar com pessoas que possam trocar informações. Elas já haviam percorrido esse caminho e era o reconhecimento da dificuldade que isso implica que faz com que sigam reclamando da falta de alternativas.

Outra diferença fundamental entre minhas interlocutoras e as mães de crianças é que aquilo que é esperado já não é mais o mesmo. A deficiência é o seu cotidiano, é o habitual de suas vidas e não se configura como algo extraordinário com o qual se tem que lidar. O futuro que talvez sequer tenham imaginado, de certo modo, chegou. Suas expectativas agora são bastante diferentes daquelas que tinham na infância dos filhos: quando tomadas pelo desconhecido, viam nos serviços a chance de se alcançar a normalidade perdida. Os serviços, as atividades e os espaços que frequentam, agora voltados a socialização e realização de atividades que os ocupem, refletem essa mudança. Não que estas não acabem por ter um papel terapêutico de desenvolvimento de habilidades e promoção do bem-estar, mas seu foco não é esse.

Com o passar dos anos, as expectativas e as esperanças vão se reconfigurando. O modo como hoje a deficiência se faz mais presente nos discursos públicos, na grande mídia e na cultura popular por meio de novelas, filmes e livros, com adultos com deficiência intelectual ganhando visibilidade, atravessa a vida de minhas interlocutoras, mas em um momento em que seus próprios filhos já são adultos. Mesmo sabendo que há grande diferença entre falar de um jovem de dezoito anos e uma pessoa de cinquenta, saliento aqui que, para a maior parte de minhas interlocutoras, essas representações da deficiência eram raras quando seus filhos cresciam. A chegada a essa fase da vida se deu sem muita preparação para tanto, sem muita visibilidade acerca das questões sobre envelhecimento e deficiência intelectual e, com isso, sem muita informação sobre serviços e atividades possíveis ou desejáveis. Cabe a elas, mais uma vez, construir esses caminhos. Nessa construção, as salas de espera continuam sendo uma constante. Sua busca leva inevitavelmente a esses momentos em que deverão sentar e esperar que o filho termine sua atividade. A espera é e foi, ao longo de suas vidas, uma prática de cuidado.

Considerações finais

Esperar pelo filho não é, é claro, uma exclusividade da experiência de maternar pessoas com deficiência. Não por acaso, desde a gravidez dizemos que a mulher está “esperando um filho”, expressão que abarca tanto a questão do tempo até o nascimento quanto as expectativas que desde já vão sendo depositadas naquele sujeito. Ao longo da vida do filho, são muitos os momentos em que as mães-cuidadoras são compelidas a esperar. A “espera ativa” marca de modo particular também o cotidiano de mães que lutam para encontrar seus filhos desaparecidos (Ferreira, 2019FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita. Notas sobre a rotina: tempo, sofrimento e banalidade do poder na gestão de casos de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro. Revista Antropolítica, n. 47, 2019, pp.118-142.) ou por justiça pros seus filhos assassinados por agentes do estado (Vianna, 2015VIANNA, Adriana. Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, Patricia et al. (org.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, 2015, pp.405-418.), para quem a “espera” é permeada por constantes andanças por instituições públicas com seus tempos específicos. Sugiro, contudo, que a especificidade das mães de pessoas com deficiência intelectual está em como essa espera se articula com o tempo do cuidado e o tempo aleijado para com isso desafiar as temporalidades dominantes; é uma espera que se dá “ao longo do tempo”, desde a primeira infância dos filhos até a vida adulta. Ao apresentar aqui a experiência de mães de adultos com deficiência intelectual, busquei chamar atenção para como essas “esperas de longo prazo”, as que se constituem ao longo de suas vidas, modificam-se e vão modificando suas expectativas quanto a um futuro possível.

Estar presente no tempo-espaço da sala de espera e escutar as histórias únicas dessas mulheres, permitiu-me refletir sobre o “trabalho do tempo” (Das, 2007DAS, Veena. Life and Words: Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.) no que tange às práticas de cuidado de adultos com deficiência intelectual. Como espero ter demonstrado, o tempo aleijado age não somente sob corpos e mentes deficientes, mas incide sob todas suas relações. Passa-se a compreender o tempo de seus filhos, romper com visões romantizadas do que o futuro deveria ser ou com concepções fatalistas de que só há um futuro possível para a deficiência, buscar ou criar atividades que seus filhos gostem e trabalhar junto a eles para que esses espaços sigam fazendo sentido em suas rotinas. As mães aprendem com seus filhos sobre essa temporalidade, conhecendo aos poucos seus ritmos e tempos, ao passo que reformulam suas próprias rotinas para acomodar esses ritmos, o que, como apontei, envolve momentos de busca ativa, caminhadas, idas e vindas e momentos de espera. Estas por sua vez, levam a novas e constantes esperas que são tão características do tempo do cuidado.

Reconhecer as temporalidades dissidentes e refletir sobre elas é parte central do reconhecimento do trabalho do cuidado e da valorização da deficiência enquanto modo outro de habitar o mundo. Refletir acerca dessas temporalidades a partir da espera permite melhor compreender as complexidades dessa relação marcada por expectativas diversas, diferentes necessidades a serem supridas e constantes julgamentos morais sobre qual é o melhor modo de cuidar e de utilizar o tempo. Ao longo da vida, as expectativas vão sendo reajustadas, e a deficiência, aquele fato extraordinário no momento da descoberta, vai aos poucos se tornando a rotina, o cotidiano, e com isso novas questões surgem. A incessante busca por tratamentos e terapias da infância vai dando lugar a outras atividades, e as preocupações para com o futuro tomam outra forma, sendo agora mais voltadas para o que irá acontecer quando as mães não mais estiverem aqui.

O aprendizado, no entanto, nunca cessa. Recordo-me, para finalizar, de uma cena que ocorreu durante a apresentação de final de ano dos alunos de musicoterapia da Associação. Ao ver um jovem com síndrome de Down se recusar a cantar e sentar-se junto à mãe, Dona Eleonora falou baixinho ao meu ouvido que com o filho Gabriel acontecia a mesma coisa. Em casa, ele costumava sentar-se no chão e ficar parado, sem falar, sem fazer nada. Mesmo na hora do jantar pegava o prato e ia comer no chão. No início das aulas de musicoterapia, recusava-se a participar. No entanto, desde que começara as atividades na Associação, ele havia mudado quanto a isso: participava das atividades e interagia com os colegas e com a família. Assim que a próxima música começou e era a vez de Gabriel cantar, Eleonora apontou para o filho que estava no centro da sala, sozinho, segurando em suas mãos um violão e cantando sua música preferida no microfone mesmo sem pronunciar as palavras com exatidão. Sorrindo, Dona Eleonora olhou para mim e concluiu: “valeu o esforço, né?”. Retribuí o sorriso e voltamos a escutar a música.

Este artigo é fruto de minha tese de doutorado (2020) realizada com financiamento CAPES e enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a quem sou grata. Agradeço também a minha orientadora Claudia Fonseca e aos colegas do Grupo de Estudos em Antropologia e Deficiência (GEAD/UFRGS) pelo constante diálogo e contribuições. A versão final deste artigo contou com a colaboração de atenciosas pareceristas e editoras desta revista, a quem agradeço pelo excelente trabalho, e também com a leitura atenta e generosa de meu colega Lucas Besen.

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  • 1
    Todos os nomes próprios utilizados neste artigo são fictícios.
  • 2
    Reconheço a amplitude da categoria “deficiência intelectual” e não a utilizo com a finalidade de homogeneizar a experiência de todos meus interlocutores, mas sim para que, como salienta Lopes (2019)LOPES, Pedro. Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tronar. Anuário Antropológico, v. 44, n.1, 2019, pp.67-91., inserir-me em debates acadêmicos e políticos no cenário brasileiro e internacional que fazem uso da categoria. Historicamente, nos conceitos biomédicos, a deficiência intelectual foi configurada como um “atraso cognitivo” associado a uma suposta incapacidade para aprender decorrente de um desenvolvimento inferior àqueles considerados típicos (Dias; Lopes de Oliveira, 2013). Apesar de os filhos de minhas interlocutoras viverem com diferentes diagnósticos, tais como Síndrome de Down, autismo, “retardo mental” e até mesmo sem um diagnóstico específico, as noções de “falta”, “atraso” e “incurável” permeiam seus cotidianos tão marcados pela experiência do capacitismo. Sobre deficiência intelectual na antropologia brasileira, ver Lopes (2020LOPES, Pedro. Deficiência na Cabeça: Percursos entre diferença, síndrome de Down e perspectiva antropológica. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020., 2019LOPES, Pedro. Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tronar. Anuário Antropológico, v. 44, n.1, 2019, pp.67-91.); Simões (2017)SIMÕES, Julian. “A gente que está aqui é diferente”: notas etnográficas sobre deficiência intelectual numa APAE do interior de São Paulo-BR. Teoria e Cultura, v. 11, n.3, 2017, pp.75-88., e Fietz (2020, 2016).
  • 3
    A dimensão temporal do ato de maternar vem sendo abordada de diferentes maneiras em trabalhos recentes. Adriana Vianna (2015)VIANNA, Adriana. Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, Patricia et al. (org.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, 2015, pp.405-418., em trabalho realizado junto a famílias, em especial mães, que buscam justiça por filhos assassinados por agentes estatais, diferencia o “tempo familiar” do “tempo de luta”, a fim de marcar os diferentes modos pelos quais o tempo age nas práticas dessas mulheres. A autora aponta como o segundo, marcado pela burocracia e ordem de poder, não condiz com a urgência e dinamismo do primeiro. As esperas, que constituem e demarcam essas relações de poder, são com isso uma constante na vida dessas mulheres (Vianna, 2015VIANNA, Adriana. Tempos, dores e corpos: considerações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, Patricia et al. (org.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, 2015, pp.405-418.). Já Camila Fernandes (2018)FERNANDES, Camila. O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade. In: RANGES, E.; FERNANDES, C.; LIMA, F. (org.). (Des)Prazer da norma. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2018, pp.297-320., em sua pesquisa junto a mães de classes populares da cidade do Rio de Janeiro, articula gênero, classe, raça e geração em uma análise a partir do tempo do cuidado para refletir sobre os diferentes engajamentos com o tempo entre homens e mulheres, bem como sobre como a generificação das relações de cuidado age na mobilidade de suas interlocutoras. Apresentando as noções de “tempo para mim”, “tempo para os outros” e “tempo de ‘correr atrás”, a autora sugere que “a luta das mulheres ocorre na tentativa de garantir mobilidade para ‘correr atrás’, na balança entre o ‘tempo para mim’ e o tempo para o outro. Minha pesquisa se soma a esses esforços de pensar sobre tempo, cuidado e relações familiares, porém em diálogo com os estudos sociais da ciência e tecnologia e os estudos sobre a deficiência.
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    O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi aprovado em 1996 a fim de garantir o recebimento de um salário mínimo por mês para idosos e pessoas com deficiência que não possam exercer atividade laboral e cuja renda familiar não ultrapasse ¼ de salário mínimo per capita. Em 2020, foi aprovada a Lei n. 13.981, de 23 de março de 2020, que aumentou o limite da renda per capita para concessão do benefício para meio salário mínimo. Ele não está condicionado a contribuições prévias ao INSS, podendo ser recebido tanto por adultos com deficiência quanto por crianças, mediante perícia técnica realizada a fim de determinar tanto a “incapacidade laboral” quanto a renda familiar e condição de vulnerabilidade social. Foi a partir da ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal que ela se tornou mais abrangente, mais que dobrando o número de pessoas com deficiência beneficiados entre os anos de 2002 e 2018, configurando-se como a principal fonte de renda para muitas famílias de pessoas com deficiência. Sobre a importância do BPC para famílias de pessoas com deficiência, ver também Matos (2016); Fonseca; Fietz (2018); Matos; Quadros; Silva (2019).
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    Para essas discussões no Brasil, ver Lopes (2020)LOPES, Pedro. Deficiência na Cabeça: Percursos entre diferença, síndrome de Down e perspectiva antropológica. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020., Simões (2019), Aydos (2017), Mello (2016), Diniz (2007).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2022
  • Aceito
    22 Set 2022
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