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Mobilidades e imobilidades articuladas às relações de gênero no casamento de migrantes haitianos

Mobilities and Immobilities Linked to Gender Relations in Marriages of Haitian Migrants

Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa desenvolvida com o objetivo de analisar as mobilidades e imobilidades inerentes ao processo migratório haitiano no Brasil, observadas a partir do casamento entre haitianos em Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Revela como os diversos movimentos na configuração dos casamentos entre esses migrantes estão articulados a relações de gênero fundamentadas em identidades religiosas. Os dados empíricos foram levantados em uma pesquisa etnográfica desenvolvida em Lajeado desde 2013.

Mobilidade; Imobilidade; Casamento; Migração; Gênero

Abstract

This article presents the results of a study that analyzed mobilities and immobilities inherent to Haitian migration to Brazil, observed in marriages between Haitians in Lajeado, in the interior of Rio Grande do Sul state. It reveals how various movements in the configuration of these marriages are linked to gender relations, grounded in religious identities. The empirical data were collected in ethnographic research conducted in Lajeado since 2013. The article considers political and religious dimensions of the mobilities and marriage.

Mobility; Immobility; Migration; Marriage; Gender

Introdução

Mobilidade e migração são conceitos que se diferenciam em suas genealogias e discursos. Migração se refere principalmente ao atual movimento físico, espacial ou geográfico de pessoas, devido à pobreza, à procura por trabalho ou por uma nova vida em países, regiões ou cidades abastadas. Já o conceito de mobilidade, de origem mais recente, trata, além do movimento de pessoas, do fluxo de materialidades, dinheiro, ideais, imagens, conhecimento e tecnologias, e a maneira como as diversas mobilidades são restritas, facilitadas ou compreendidas. Mais do que enxergar o movimento de pessoas além das fronteiras como resultado de uma escolha racional, de uma necessidade ou de uma mera estratégia, individual ou coletiva, a mobilidade pode englobar todo tipo de jornadas, incluindo as gestadas por desejos, obrigações, nostalgia, imagens, símbolos e práticas culturais, ou as provocadas por mudanças de tecnologia ou imprevistos nas trajetórias de vida (Groes; Fernandez, 2018GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine. Intimate Mobilities and Mobile Intimacies. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World. Berghan Oxford, 2018, pp.11- 44.).

O paradigma das mobilidades propõe questões, teorias e metodologias, mais do que uma descrição totalizante ou redutiva do mundo contemporâneo. Do mesmo modo que em outras abordagens das redes globais, dessa ótica percebe-se que o aumento das transações transnacionais e da capacidade de dispersão geográfica e de deslocamento acontece paralelamente à ampla concentração territorial de recursos necessários para a administração e a manutenção dessa mobilidade. O paradigma das mobilidades atenta a dar conta não apenas da rapidez da liquidez em alguns domínios, mas dos modelos concomitantes de concentração que criam áreas de conectividade, centralidade e autonomia, em alguns casos, e desconexão, exclusão social e subordinação em outros (Urry; Scheller, 2006). Dessa perspectiva, as pessoas e as práticas culturais não estão restritas a um território fixo; fazem parte de múltiplas redes espaciais, com vínculos temporais. Foca-se nas inter-relações entre as categorias espaciais de mobilidade e imobilidade, colocando em pauta elementos de mobilidade presentes em situações de imobilidade e vice-versa, em uma concepção teórico-metodológica que rompe com uma posição binária na abordagem das inter-relações entre conexões locais e transnacionais, experiências e imaginários da migração, enraizamento e abertura cosmopolita (Salazar; Glick-Schiller, 2014). Abre-se, dessa maneira, a possibilidade de analisar circuitos afetivos como redes sociais que emergem do envio, retenção ou recepção de bens, ideias, pessoas e emoções, nas quais o amor, o desejo e a obrigação estão entrelaçados com o dinheiro, o consumo e os interesses materiais (Cole; Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.).

Outra das premissas metodológicas do novo paradigma das mobilidades é dar menos ênfase às fronteiras e mais às pessoas que se mobilizam através delas, às realidades vividas por quem pratica essa mobilidade em diferentes posições, gradações e temporalidades. Desloca-se a atenção das fronteiras entre a mobilidade e a imobilidade para os significados do transitar por esses limites que dão sentido às imagens de pertencimento e de não pertencimento. O realce feito pelas teorias das mobilidades na conexão entre o movimento físico, as representações que lhe dão significado e as práticas incorporadas oferece novas luzes sobre as imprevisíveis vidas simbólicas dos diversos modos de trânsito (Salazar; Glick-Schiller, 2014).

No lugar de contrastes entre a estabilidade e a mobilidade, a segurança do próximo e os riscos do distante, propõe-se analisar elementos de imobilidade e de mobilidade, não em um mapeamento ordenado em direção ao móbil ou ao estável senão em uma combinação complexa de permanência e movimento, observadas nas práticas sociais, não assumidas a priori (Salazar; Glick-Schiller, 2014). A essa mistura se referem Seyferth (2011)SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, 2011, pp.47-62. e Slenes (2011)SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas, Editora da Unicamp, 2011., em seus respectivos trabalhos, quando destacam a influência dos deslocamentos de migrantes e o tráfico de escravos na constituição de organizações sociais estáveis, como a colônia e a família, na formação do Estado-Nação.

Ao privilegiar as inter-relações entre mobilidade e estabilidade, parte-se do pressuposto de que a mobilidade não é apenas geográfica, mas também social. O paradigma das mobilidades aborda as relações entre mobilidade física e social e assinala que a narrativa da migração como mobilidade física está integralmente ligada à possibilidade de mobilidade social. Com base no referido paradigma das mobilidades, que oferece novas perspectivas para estudar “assuntos em movimentos” (Urry; Sheller, 2006URRY, John; SHELLER, Mimi. The new mobilities paradigm. Environment and Planning A, v. 38, n. 2, Lancaster University, England, 2006, pp.207-226.), neste artigo analisamos as (i)mobilidades inerentes ao processo migratório haitiano no Brasil, tomando como referência a prática de casamento no âmbito do contingente migratório haitiano em Lajeado, cidade do interior do Rio Grande do Sul. Trata-se de migrantes oriundos de um país em que, como afirmam Handerson e Joseph (2015)HANDERSON, Joseph; JOSEPH, Rose-Myrlie. As relações de gênero, de classe e de raça: mulheres migrantes haitianas na França e no Brasil. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v.9, n.2, Brasília, 2015 [https://periodicos.unb.br/index.php/repam/issue/view/1360, - acesso em 17 maio 2016].
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, as (i)mobilidades fazem parte da trajetória de pessoas que vislumbram nelas possibilidades de vida. No Haiti, o ato migratório é um recurso de mobilidade social (Handerson, 2015b). Essas reflexões se inserem em um campo de estudos que explora o entrelaçamento entre as mobilidades e as intimidades (Groes; Fernandez, 2018GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine. Intimate Mobilities and Mobile Intimacies. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World. Berghan Oxford, 2018, pp.11- 44.).

No que hoje é o município de Lajeado, foi fundada, entre 1869 e 1874, a Colônia dos Conventos que deu início à colonização germânica naquela região, projeto favorecido pelo apoio do Estado-Nação brasileiro às iniciativas particulares que promoviam a mobilidade europeia para o Brasil (Seyferth, 2011SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, 2011, pp.47-62.). E, a partir de 2012, Lajeado se torna um dos cenários da migração haitiana no Brasil. Com uma população estimada de 82.951 habitantes (IBGE, 2018), abriga em torno de 8001 1 Dado fornecido por um haitiano, funcionário do CRAS de Lajeado, em 21 de julho de 2020, no debate “Migrantes e enchentes - o que acontece quando a água baixa?”, no canal da Rede Soberania, no Youtube [www.facebook.com/watch. - acesso em 21 julho 2020]. migrantes haitianos. Adotamos a “cidade como contexto” (Glick-Schiller; Çaglar, 2009GLICK-SCHILLER, Nina; ÇAGLAR, Ayse. Introduction: Migrants and cities. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 35, n. 2, Londres, 2009, pp.177-202.:3), por reconhecer que o processo de globalização e as interconexões transnacionais que definem a migração variam de acordo com a posição que a cidade ocupa dentro de hierarquias de poder nos âmbitos global e nacional. No marco das cidades, as oportunidades dos migrantes são condicionadas pela infraestrutura local, pela possibilidade de participar da economia local, pelo acesso a serviços de educação, moradia, vida cultural e política. Nesse sentido, os migrantes atuam como agentes e sujeitos dos processos globais que reposicionam as localidades, contribuindo com o progresso em diversos campos (Glick-Schiller; Çaglar, 2009GLICK-SCHILLER, Nina; ÇAGLAR, Ayse. Introduction: Migrants and cities. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 35, n. 2, Londres, 2009, pp.177-202.).

Em pequenas cidades, como Lajeado, os migrantes enfrentam um processo migratório diferenciado ao vivenciado em cidades globais, onde os processos econômicos estão entre os mais altos do ranking de competitividade mundial (Besserer, 2015BESSERER, Federico. Presentación Revista La ciudad transnacional: aportes teóricos e etnográficos. Alteridades, n. 50, ano 25, Universidad Autónoma Metropolitana, 2015, pp.5-10.). Apesar de não ser uma cidade global, Lajeado apresenta-se como a sétima cidade brasileira em qualidade de vida, segundo indicadores de saúde, bem-estar, finanças, habitação, educação, trabalho e cultura. É polo do ramo alimentício, contando com grandes empresas do setor, entre elas a Minuano (Região dos Vales, 2017), que se destaca como o maior local de trabalho dos haitianos. Nessa cidade, há um haitiano, funcionário da prefeitura, que atua na mediação das relações entre os migrantes e a cidade. Ele auxilia os que chegam na emissão da documentação necessária para se vincularem ao mercado de trabalho e para terem acesso aos serviços públicos básicos de saúde e educação que a cidade oferece.

Membros da sociedade local se opõem ao uso de serviços por parte dos migrantes, alegando que os recursos públicos na cidade são limitados e, portanto, deveriam beneficiar apenas os nativos. Paradoxalmente, a ampla visibilidade da presença dos migrantes na cidade desperta o interesse de igrejas e instituições públicas de ensino em desenvolver projetos que os beneficiem. Ministram cursos, fornecem alimentação e os apoiam nas necessidades básicas que surgem em situações de crises, como acontece nas enchentes do Rio Taquari que atinge os bairros da cidade habitados por grande parte dos haitianos.

Nesse cenário, o eixo de nossas reflexões são as práticas e representações de casamento entre migrantes haitianos em Lajeado, processo que envolve diferentes tipos de trocas, bem como a luta continua dos migrantes por regenerar suas relações íntimas (Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.). Nesse processo se observam diversos sentidos das mobilidades e imobilidades que configuram essa experiência migratória. Por meio do casamento se (re)constroem os espaços de atuação dos homens e das mulheres fundamentados em regras e valores atravessadas por múltiplas dimensões culturais, religiosas, políticas, econômicas e corporais, entre outras - fato elucidativo de que as relações de gênero estão articuladas à dinâmica migratória. Como apontam Pessar e Mahler (2001)PESSAR, Patricia R; MAHLER, Sarah J. Gender and Transnational Migration. Paper given to the conference on Transnational Migration: Comparative Perspectives. Princeton University, 30 June-1 July 2001 [https://www.incedes.org.gt/Master/pessarsesentatre.pdf – acesso em: 27 abr. 2023].
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, gênero é um conceito central para pensar as migrações porque opera simultaneamente em múltiplas escalas espaciais e sociais através de terrenos transnacionais. É dentro do contexto de escalas particulares e entre escalas que as ideologias e relações de gênero são reafirmadas e reconfiguradas.

As diferenças e desigualdades de gênero na experiência migratória intervêm nos diversos sentidos das (i)mobilidades de homens e mulheres. Tanto os posicionamentos dos homens quanto os das mulheres são perpassados por espaços de negociação, por limitações e por agenciamentos (Cogo, 2017COGO, Denise. Comunicação, migrações e gênero: famílias transnacionais, ativismos e usos de TICs. Intercom - RBCC, v.40, n.1, São Paulo, 2017, pp.177-193.; Handerson, 2015HANDERSON, Joseph. Diáspora. Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, ano 21, n. 43, Porto Alegre, jan./jun, 2015, pp.51-78.). Definidos por interesses, não apenas do casal, mas daqueles parentes que ficaram no país de origem, com os quais eles têm uma obrigação moral (Cole, 2016COLE, Jennifer. Giving Life: Regulating Affective Circuits among Malagasy Marriage Migrants in France. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016 [https://ereader.perlego.com/1/book/1851026/15 - acesso em: 14 mar. 2018].
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; Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.). Dessa ótica, a identidade de gênero não é uma estrutura binária e linear senão um construto histórico e cultural em constante movimento. Refutam-se concepções de totalidade e de universalidade, apontando para os múltiplos significados socioculturais de masculinidade e feminilidade (Dutra, 2013DUTRA, Delia. Mulheres, migrantes, trabalhadoras: a segregação no mercado de trabalho. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n.40, Brasília, jan/jun. 2013, pp.177-193.; Piscitelli, 2009a; Butler, 2003BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2003. Tradução de Renato Aguiar.).

Essas práticas e significados do casamento entre migrantes haitianos as discutimos, neste artigo, à luz das teorias do paradigma das mobilidades, em quatro tópicos. No primeiro, Dinâmicas da mobilidade haitiana em Lajeado, apresentamos uma visão retrospectiva da(s) (i)mobilidade(s) haitiana(s) ao longo da experiência migratória haitiana naquela cidade, desde a chegada do primeiro contingente de migrantes até a atualidade. No segundo tópico, Fatores propulsores de (i)mobilidades nas configurações dos casamentos, evocamos as mobilidades e imobilidades dos haitianos que se revertem na (re)construção de casamentos na cidade de assentamento, salientando que o que se mobiliza não são apenas pessoas, mas também representações sociais acerca de práticas culturais. No terceiro tópico, O casamento: um direito de cidadania que mobiliza os migrantes haitianos, discutimos a prática de casamento como um direito à cidadania que amplia o espectro de (i)mobilidades dos migrantes tanto no país de origem quanto no de acolhida. Por último, no Significado simbólico do casamento: expressão de (i)mobilidade(s), abordamos o casamento como um ritual que reforça o laço entre correligionários, fundamentado em uma cultura religiosa que exalta valores e práticas vinculadas a uma ideologia de gênero que dá sustentação a essas mobilidades.

O conceito ideologia de gênero utilizado aqui não se enquadra em discussões políticas em torno de mudanças nas relações de homens e mulheres e da extensão de direitos a homossexuais, do qual trata Miskolci (2018)MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. cadernos pagu (53), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018, e185302 [https://www.scielo.br/pdf/cpa/n53/1809-4449-cpa-18094449201800530002.pdf - acesso em: 14 abr. 2023].
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. Mas é construído com base numa concepção de gênero que não se define apenas pelo sexo biológico senão por regras identificáveis em práticas sociais, como o casamento, que organizam socialmente a diáspora haitiana. Nesse sentido, o gênero não é somente “um princípio de ordem, pautado em uma divisão social de tarefas e funções diferenciadas; é igualmente uma grade de leitura, uma maneira de pensar o mundo e o político pelo prisma da diferença sexual” (Sander, 2018SANDER, Vanessa. Pensar o sexo e o gênero. cadernos pagu (52), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018, e185221 [https://www.scielo.br/pdf/cpa/n52/1809-4449-cpa-18094449201800520021.pdf – acesso em: 14 abr. 2023].
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).

Metodologia

As reflexões contidas neste artigo são resultado de uma pesquisa etnográfica que começa logo após a chegada do primeiro contingente de migração haitiana para a cidade de Lajeado, em 2013, habitada, em sua maioria, por descendentes de alemães e italianos. Nesse cenário, enquanto residentes em Lajeado, tivemos acesso aos discursos sociais nos quais algumas pessoas da sociedade local, de identidade europeia2 2 Região colonizada há quase 200 anos por alemães e italianos. , se posicionam a respeito da presença dos migrantes contemporâneos na região, com narrativas racistas e xenofóbicas. Esses discursos, a favor ou contra a estadia dos recém-chegados na cidade, são mediados pelos veículos de comunicação local.

O ponto de partida da pesquisa foi o mapeamento do perfil social do primeiro contingente de migrantes haitianos que chega à cidade, as trajetórias migratórias, histórias de vida, identidades e mecanismos de proteção social constituídos pelos migrantes para contornar os obstáculos no processo migratório. Na coleta das informações, utilizamos os instrumentos metodológicos de pesquisas etnográficas como entrevistas dirigidas, observação participante, registro de imagens em vídeos e fotografias.

No registro etnográfico, analisamos as representações sociais dos haitianos, visando identificar pensamentos, ações e sentimentos construídos em decorrência das vivências na experiência migratória, já que, como Brah (2006)BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376. sugere, a experiência é um processo de significação e condição para a constituição daquilo que chamamos realidade. A experiência é uma prática de atribuir sentido, simbólica e narrativamente (Sander, 2018SANDER, Vanessa. Pensar o sexo e o gênero. cadernos pagu (52), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018, e185221 [https://www.scielo.br/pdf/cpa/n52/1809-4449-cpa-18094449201800520021.pdf – acesso em: 14 abr. 2023].
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). Indagar por representações sociais é reconhecer ideias e sentimentos que o indivíduo expressa através da fala e das ações. A linguagem contém “em seu vocabulário e sintaxe uma filosofia petrificada do social sempre pronta a ressurgir das palavras comuns ou das expressões complexas [...]” (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 2004:32). A abordagem das representações sociais nos permitiu registrar ideias e sentimentos expressos por haitianos e haitianas em conversas dirigidas acerca dos significados do casamento.

No transcurso da pesquisa, tornaram-se eloquentes as diversas mobilidades que caracterizam este fluxo migratório. No movimento de chegadas e partidas dos haitianos em Lajeado, percebemos que o casamento é uma prática regular entre esses migrantes nos últimos anos (2015-2018). Em média, acontecem dois casamentos por mês, segundo dados do líder dos haitianos na cidade. Com base nessa prática, observamos as interconexões entre mobilidades e imobilidades no processo migratório haitiano.

Os casamentos entre haitianos em Lajeado3 3 Conforme dados do cartório do município, totalizam 16 casamentos no período de 2015 a 2017, além dos casamentos que acontecem na cidade vizinha, Estrela, onde as exigências para casar-se são menores do que em Lajeado, já que naquele município não é exigido aos migrantes uma comprovação de estado civil, “valem-se da boa-fé”, segundo um funcionário do cartório. são promovidos por dois haitianos que ao longo de cinco anos se consolidaram como líderes religiosos (liderança que se estende a diversos campos) entre os migrantes da cidade, com o apoio da Igreja Cruzada Pentecostal Brasileira. Nesse contexto, colocamos a questão que norteia esta reflexão: quais são os significados do casamento no quadro das (i)mobilidade(s) que definem esse processo migratório haitiano?

Para analisar esse fenômeno, acompanhamos os casamentos de haitianos em Lajeado de 2015 até 2017. Nesses eventos, atuamos como convidadas às cerimônias religiosas, como madrinhas, na condução dos noivos até a igreja, nos preparativos das noivas, enfim, de diversas formas. Essa inserção no campo nos permitiu observar práticas ligadas aos preparativos, aos rituais religiosos e às festas de comemoração e essas informações estão recopiladas em vídeos e fotografias - desse registro etnográfico, temos dezenas de DVDs e fotografias. Registramos também as narrativas de três casais, antes de seus casamentos, e dos líderes religiosos que têm sido interlocutores ao longo desta pesquisa, construída seguindo as orientações teórico-metodológicas de Ingold (2016)INGOLD, Tim. Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia. Revista Educação Quadrimestral, PUCRS, v. 39, n. 3, Porto Alegre, 2016, pp.404-411.. É um conhecimento coproduzido, construído na convivência com a comunidade migrante haitiana em Lajeado, na encruzilhada de vidas vividas junto a outros. Com base no engajamento prático e sensível do fenômeno observado, desenvolvemos as percepções e as ações apresentadas neste artigo.

Dinâmicas da mobilidade haitiana em Lajeado

Em 2012, os haitianos chegam à cidade de Lajeado para suprir a demanda de mão de obra das empresas, indústrias de alimentos e de construção civil da região. Procuram emprego com carteira assinada para obterem recursos financeiros suficientes para viver bem, enviar remessas aos membros das famílias transnacionais mais próximas, construir a “casa diáspora” no país de origem (Handerson, 2015HANDERSON, Joseph. Diáspora. Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, ano 21, n. 43, Porto Alegre, jan./jun, 2015, pp.51-78.) e dar continuidade à formação escolar. É um movimento que modula as relações familiares sustentado por dinâmicas econômicas, circuitos de mercado e remessas (Braum; Dalmaso; Neiburg, 2014).

Os haitianos que migram buscam melhorar a qualidade de vida deles e de seus familiares. Contudo, a crise econômica e política no Brasil, que se iniciou em 2014, repercute negativamente em seus projetos (Igreja..., 2018). Com a crise, as empresas da região reduzem as vagas de emprego e os migrantes perdem o suporte que elas lhes ofereceram no processo de instalação, durante a primeira fase dessa migração, em 2012, quando lhes subsidiavam alimentação e moradia. Esse quadro corrobora a tese de que os fluxos migratórios são estruturados pelo grande negócio e por estados que servem a interesses do capital global e não protegem o direito dos trabalhadores móveis. A mobilidade dos trabalhadores favorece os interesses de um capital global erigido sob a exploração sistemática da mão de obra barata, ao mando das classes mundialmente privilegiadas (Salazar; Glick-Schiller, 2014).

A situação dos migrantes haitianos gerada pela decadência econômica das empresas em Lajeado nos remete à teoria dos paradoxos da migração de Sayad (1998)SAYAD, Abdelmalek. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998.. De acordo com o autor, as razões que legitimam a presença do estrangeiro na sociedade de acolhida são de caráter provisório. A permanência se explica apenas pelo trabalho – não qualquer um, mas “o trabalho para imigrantes” (Sayad, 1998SAYAD, Abdelmalek. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998.:55). Na cidade de Lajeado, o “trabalho para imigrantes” mais representativo está em indústrias de alimentos onde são encarregados do manejo de frangos. Desenvolvem atividades repetitivas em espaços climatizados com temperaturas baixíssimas, o que leva muitos deles a se afastarem por problemas de saúde.

Na referida crise econômica, as empresas localizadas em Lajeado e em cidades vizinhas deixam de participar como propulsoras do deslocamento dos migrantes para a cidade. De maneira que, os fatores que influenciam para o início da migração diferem das condições que fazem com que continue ou se perpetue. Depois da primeira fase, a migração torna-se mais comum na comunidade; a cada vez, há mais gente imitando os primeiros migrantes e desenvolvendo comunidades de migrantes, chamadas de diáspora (Groes; Fernandez, 2018GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine. Intimate Mobilities and Mobile Intimacies. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World. Berghan Oxford, 2018, pp.11- 44.). A partir de 2014, a mobilidade dos haitianos para Lajeado acontece estimulada pelo apoio de seus conterrâneos assentados na localidade, que atuam através de redes migratórias constituídas por laços sociais que ligam as comunidades remetentes e as sociedades de acolhida (Assis, 2007ASSIS, Glácia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro/2007, pp.745-772.). Essas redes representam a esperança dos homens e mulheres que decidem migrar, porque são agentes que os auxiliam nos projetos migratórios. Contudo, há diferenças de gênero no acesso às redes. Baeninger e Peres (2017)BAENINGER, Rosana; PERES, Roberta. Migração de crise: a migração haitiana para o Brasil. Revista brasileira Estudos de População, v.34, n.1, Belo Horizonte, 2017, pp.119-143. afirmam que entre os migrantes haitianos, as mulheres acessam mais que os homens as redes de apoio e de informação, desde o planejamento da viagem até a chegada ao destino. Piscitelli (2009 b) analisou processo análogo, no qual identifica a preponderância do componente feminino nas redes sociais informais que as mulheres migrantes acionam para encontrar trabalho.

Seguindo Dutra (2013)DUTRA, Delia. Mulheres, migrantes, trabalhadoras: a segregação no mercado de trabalho. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n.40, Brasília, jan/jun. 2013, pp.177-193., essas redes de migrantes não desaparecem quando a procura por mão de obra em um país acaba, em situações de crises econômica. O retorno ao país de origem não interessa aos migrantes, uma vez que a cultura de migração continua a estimular as migrações, “independentemente das mudanças no contexto social, econômico e político dos países de origem e destino” (Dutra, 2013DUTRA, Delia. Mulheres, migrantes, trabalhadoras: a segregação no mercado de trabalho. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n.40, Brasília, jan/jun. 2013, pp.177-193.:183). Nos termos de Glick-Schiller e Çaglar (2009)GLICK-SCHILLER, Nina; ÇAGLAR, Ayse. Introduction: Migrants and cities. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 35, n. 2, Londres, 2009, pp.177-202., a atuação em rede qualifica a diáspora haitiana, fundamentada em um sentimento de unidade e identidade entre pessoas dispersas pelo mundo. As referidas autoras, em seus estudos de migração haitiana, mostram que a experiência legal, social, política e econômica de viver em uma variedade de localidades distintas e as interconexões entre esses lugares por intermédio do parentesco, sites da internet, comida, música e religião criam uma complexa mistura de solidariedade e distância. Os simulacros de memória comum contêm diferentes experiências, sensibilidades, estados afetivos, desejos e ideologias de pertencimento. No âmbito dessas novas configurações sociais, em resposta a situações novas emergem novas identidades.

A diáspora desempenha um papel fundamental na mobilidade dos haitianos em Lajeado durante a crise econômica brasileira que se inicia em 2014. Apoiados em laços transnacionais, familiares ou de amizade, os migrantes saem à procura de um espaço de trabalho que lhes possibilite desenvolver seus projetos de vida. Depois de um ou dois anos tentando melhorar suas condições de vida em Lajeado, mobilizam-se para outras cidades do sul do Brasil, ou do exterior, onde têm laços. A ampla circulação de migrantes é estimulada pelas limitações estruturais e pelo desemprego que enfrentam os migrantes na cidade de Lajeado. Observando as chegadas e saídas de haitianos e haitianas, percebemos um movimento intenso. Uma situação elucidativa desse fenômeno é a matrícula no curso de português para migrantes oferecido pela universidade em Lajeado. Há uma mudança constante entre os alunos haitianos que ingressam no curso. Enquanto alguns vão embora da cidade (informação divulgada por eles no grupo de WhatsApp criado como canal de comunicação entre alunos e professores), outros chegam.

A mobilidade interna e a mobilidade internacional são respostas às mesmas condições. A opção por uma ou outra forma de mobilidade relaciona-se com uma matriz de oportunidades que se abrem aos migrantes (Salazar; Glick-Schiller, 2014). Eles circulam por cidades e países onde permanecem enquanto têm trabalho, esperando conseguir os recursos que lhes permitam a mobilidade social no Haiti.

A mobilidade internacional de haitianos a partir de Lajeado se intensificou em 2016, quando souberam da possibilidade de migrar para os Estados Unidos como asilados humanitários, devido à instabilidade política no Haiti. Nesse contexto, membros das famílias transnacionais nos Estados Unidos atuaram em apoio àqueles haitianos que decidiram ir atrás do sonho americano4 4 No caminho para chegar aos Estados Unidos, atravessam fronteiras terrestres no Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Guatemala e México. Em muitos dos trechos, feitos a pé, foram vítimas de coiotes, passaram fome e alguns morreram. No México, solicitavam autorização para ingressar nos Estados Unidos como asilados políticos, dali viajavam até a Califórnia, onde ficavam presos até que um parente que morasse nos Estados Unidos os buscasse. . As estratégias para atingir esse sonho foram transmitidas por indianos e senegaleses que moravam em Lajeado. Viajaram para os Estados Unidos nos primeiros meses de 2016 e conseguiram ingressar no país. Essa informação circulou nas redes de migrantes em Lajeado e levou alguns haitianos a trilhar o mesmo percurso. Além dos Estados Unidos, outro destino dos migrantes haitianos em 2016 foi o Chile – alternativa que encontraram para driblar os efeitos da crise econômica, já que no Chile o salário era 100 dólares a mais do que no Brasil, onde ganhavam 1.000 reais, o equivalente a 285 dólares. De janeiro a maio de 2016, a Polícia Federal registrou 3.234 saídas de haitianos, o dobro de 20155 5 A presença haitiana no Chile é revelada pelos dados apresentados pelo Banco Central chileno, que indicam que, em 2016, a remessa de dinheiro do Chile para o Haiti chegou a 36 milhões de dólares, aumentando 386,48% em relação ao ano anterior, quando totalizou 7,4 milhões de dólares (Para..., 2016). . Quatro anos depois, encontramos de volta em Lajeado alguns desses migrantes que viajaram para os Estados Unidos e o Chile em 2016. Os que retornaram do Chile argumentaram encontrar mais vantagens na qualidade de serviços públicos em saúde e educação no Brasil. E os provenientes dos Estados Unidos estão em Lajeado porque foram detidos pela polícia migratória americana e deportados para o Haiti, vítimas do endurecimento da política migratória estadunidense do governo Obama, em setembro de 2016, e do fim do Status de Proteção Temporal (TPS ) em 2017, durante o governo de Donald Trump. Os que conseguiram se afirmar em outros lugares postam fotos no Facebook retratando a nova situação em que se encontram fora de Lajeado. Um de nossos interlocutores na pesquisa postou as fotos de seu casamento no Canadá.

A pesquisa aponta que esse contingente migratório haitiano em Lajeado se renova constantemente. Enquanto se encontram na cidade, lutam por conquistar direitos de cidadania no âmbito da sociedade de acolhida, direitos expressos na possibilidade de adquirir os documentos de registro nacional migratório e o CPF. São esses documentos que lhes dão acesso à carteira de trabalho e ao atendimento médico nos serviços públicos de saúde. Um dos direitos que reivindicam é o direito ao casamento no Brasil. Antes de tratar da luta por esse direito, discorremos, no seguinte tópico, sobre os fatores propulsores de mobilidades e imobilidades na configuração dos casamentos de haitianos em Lajeado.

Fatores propulsores de (i)mobilidades na configuração dos casamentos entre haitianos em Lajeado

O perfil social de homens sozinhos que caracteriza o contingente migratório haitiano no início do processo (2012-2014) é substituído aos poucos por famílias, fenômeno que acontece com o aumento da presença feminina em Lajeado. É uma situação similar a outros movimentos migratórios internacionais nos quais em suas fases iniciais predominam os homens (Assis, 2007ASSIS, Glácia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro/2007, pp.745-772.). De acordo com Cole (2016)COLE, Jennifer. Giving Life: Regulating Affective Circuits among Malagasy Marriage Migrants in France. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016 [https://ereader.perlego.com/1/book/1851026/15 - acesso em: 14 mar. 2018].
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, o aumento das mulheres que migram para nações ricas a procura de sua sobrevivência e do sustento de suas famílias começa na década de 1990.

A migração feminina haitiana para o Brasil, entre 2011 e 2012, passou de 123 para 843, representando um quinto dos migrantes haitianos (Fernandes; Castro, 2014FERNANDES, Duval; CASTRO, Maria da Consolação G. de Castro. Projeto “Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral”. 2014 [https://oestrangeiro.org/estudos-sobre-a-migracao-haitiana-ao-brasil-e-o-dialogo-bilateral/ - acesso em: 03 mar. 2018].
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). Com base em dados do Ministério de Relações Exteriores, Fernandes e Castro (2014)FERNANDES, Duval; CASTRO, Maria da Consolação G. de Castro. Projeto “Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral”. 2014 [https://oestrangeiro.org/estudos-sobre-a-migracao-haitiana-ao-brasil-e-o-dialogo-bilateral/ - acesso em: 03 mar. 2018].
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mostram que o número de vistos femininos emitidos passa de 423 a 689 entre 2012 e 2013, enquanto a migração masculina, no mesmo período, varia de 961 para 1.691. Quanto ao estado civil, Baeninger e Peres (2017)BAENINGER, Rosana; PERES, Roberta. Migração de crise: a migração haitiana para o Brasil. Revista brasileira Estudos de População, v.34, n.1, Belo Horizonte, 2017, pp.119-143. assinalam que 25% das haitianas que entraram no Brasil entre 2010 e 2015 são casadas, e 70% são solteiras. Sendo maior a quantidade de homens solteiros, 76%. Sublinham também que as mulheres haitianas não vêm ao Brasil apenas na posição de cônjuges ou de filhas.

A presença maior das mulheres nesse processo migratório haitiano, em Lajeado, possibilita a reconstrução ou construção de famílias, seja quando elas, estimuladas pelo projeto de reunificação familiar, vêm ao encontro de seus maridos haitianos estabelecidos na cidade, seja quando lá chegam solteiras e se casam com seus conterrâneos. Como aponta Cole (2016)COLE, Jennifer. Giving Life: Regulating Affective Circuits among Malagasy Marriage Migrants in France. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016 [https://ereader.perlego.com/1/book/1851026/15 - acesso em: 14 mar. 2018].
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em suas pesquisas, as migrantes realizam múltiplas tarefas na posição de esposa, mãe ou filha, categorias que podem ter significados diferentes na cultura do país de origem e na cultura do país de acolhida. Contudo, em situação de mobilidade, as mulheres exercem principalmente atividades vinculadas a assuntos domésticos, sexuais e reprodutivos, assim como se integram a uma cadeia de cuidados, já que, enquanto muitas pagam a um parente para que cuide de seus filhos no país de origem, elas cuidam do marido e de outros filhos na cidade migratória. Incorporam-se a circuitos afetivos em que entrelaçam recursos materiais e sentimentais. Ao dar dinheiro e outros recursos, demostram amor e cuidado (Cole, 2016COLE, Jennifer. Giving Life: Regulating Affective Circuits among Malagasy Marriage Migrants in France. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016 [https://ereader.perlego.com/1/book/1851026/15 - acesso em: 14 mar. 2018].
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).

Esse movimento é analisado por Herrera (2012)HERRERA, Gioconda. Género y migración internacional en la experiencia latinoamericana. De la visibilización del campo a una presencia selectiva. Política y Sociedad, v. 49, n. 1, 2012, pp.35-46. em suas reflexões sobre migração e gênero. Ela argumenta que as mulheres que migram internacionalmente ocupam diversas posições: acompanhantes de seus maridos, vetores da reunificação familiar, participantes de projetos migratórios familiares, cuidadoras de membros da família. Além da ampla presença de mulheres haitianas, as crianças vindas do Haiti ou nascidas no Brasil de pais haitianos, contribuem na (re)construção de famílias e, com elas, na ampliação das demandas dos migrantes por serviços públicos de saúde e de educação. Aos poucos, haitianos e haitianas expandem os espaços de mobilidade na cidade de destino, ganhando visibilidade.

Uma das estratégias de reconstrução das vidas dos haitianos na cidade de assentamento se dá estabelecendo alianças de casamento com seus conterrâneos. Há situações em que o elo do casal separado pela migração se rompe e homens e mulheres constroem novas relações com outros parceiros do país de origem no local de assentamento. Na análise das trajetórias de vida, encontramos vários casos de casamentos haitianos em Lajeado entre pessoas que já eram casadas no Haiti. Nessas circunstâncias, casar denota um recomeço, “envolve perdas – permanentes e provisórias – que são deixadas para trás, mas envolve também a esperança de reconstrução de um futuro melhor, nem sempre alcançado” (Bartel, 2016BARTEL, Carlos Eduardo. Integração social dos imigrantes haitianos no interior do Brasil: o caso de Presidente Getúlio/SC. XIII Encontro Estadual de História da Anpuh/RS. Anais..., Santa Cruz do Sul, 2016, pp.1-14 [http://www.eeh2016.anpuh-rs.org.br/resources/anais/46/1468615073_ARQUIVO_IntegracaosocialdoshaitianosemPresidenteGetulio.pdf - acesso em: 20 abr. 2018].
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:4). De modo geral, as relações transnacionalizadas sinalizam mudanças nos arranjos familiares e nas relações de gênero (Assis, 2007ASSIS, Glácia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, setembro-dezembro/2007, pp.745-772.).

Os casamentos entre haitianos ocorrem em duas situações. Uma delas é a em que o casal namorava antes de migrar; na outra, o casal inicia o namoro em Lajeado. Em ambos casos, as alianças de casamento são estimuladas por normas culturais que definem as relações entre os sexos fundamentadas em princípios religiosos ligados às igrejas pentecostais, proibindo a coabitação entre homens e mulheres solteiros. Os casamentos acontecem em respeito às referidas normas religiosas, por interesse em ter um parceiro com o qual levar uma vida econômica, emocional e sexual estável, que facilite vivenciar a experiência migratória6 6 Em nossos encontros, as mulheres se referiam ao sexo como um dos papéis desempenhados por elas nos relacionamentos conjugais, nessa experiência migratória. Uma citação de Jordão (2017) em sua dissertação é elucidativa desse fenômeno. Conta o pedido de um haitiano para que a pesquisadora servisse de mediadora com as mulheres. “Fale que preciso de mulher para sexo, porque a minha esposa ficou no Haiti e eu vou demorar muito para ir de novo para casa. (...) se ela veio sozinha para aqui, ela também está precisando de um homem” (Jordão, 2017:84). . São relações afetivas que implicam uma mistura de trocas materiais e emocionais fundamentadas em obrigações morais, vinculando, por um lado, cada um dos membros do casal aos parentes, e, por outro, aos parceiros (Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.).

Analisamos as alianças de casamento com base na teoria espacial do parentesco de Hamberger (2005)HAMBERGER, Klaus. “Por uma teoria espacial do parentesco”. Mana, v. 11, n. 1, Rio de Janeiro, abr. 2005, pp.155-199 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000100006&lng=en&nrm=iso - acesso em: 17 abr. 2018].
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, que oferece ferramentas analíticas para pensar nas regras de casamento, já que nesse universo social os parceiros possíveis se definem em conformidade com as posições que ocupam no espaço-tempo físico, não por redes genealógicas. São migrantes haitianos que chegam à cidade de Lajeado em busca de trabalho, depois de 2012, e estabelecem relações de corresidência com conterrâneos que se tornam pares possíveis de casamento. A prevalência da prática de casamento entre membros de um mesmo grupo possibilita a formação de comunidades (Bofulin, 2018BOFULIN, Martina. Transnational Matchmaking: Marriage Practices of Chinese Migrant from Qingtian Living in Europe. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World. . Berghan Oxford, 2018, pp.46-72.). A esse respeito as teorias de Sayad (1998SAYAD, Abdelmalek. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998.:90, grifo do autor) são elucidativas:

Dividir o mesmo espaço, a mesma moradia e, por conseguinte e de forma mais ampla, as mesmas condições de vida, acaba sendo uma forma de perpetuar, a despeito das transformações que se podem produzir nos outros domínios da existência dos imigrantes, um modo de ser (imigrante) característico de um certo estado da imigração [...]

A compatibilidade de interesses entre os migrantes possibilita acessar recursos nas redes sociais a que estão vinculados, para lutar por direitos como o direito ao casamento, assunto do próximo tópico.

O casamento: um direito de cidadania que mobiliza os migrantes haitianos

A aceleração dos fluxos migratórios e a configuração de espaços transnacionais decorrentes da multiplicação das experiências migratórias transformam o universo das migrações em “um extraordinário laboratório de produção de diferença” (Mezzadra, 2012MEZZADRA, Sandro. Multidão e Migrações: a autonomia dos migrantes. Revista do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, v. 15, n. 2, 2012, pp.1-38.:72). Universo afetado por interferências de ordem política, econômica, social e simbólica que não poupam nenhuma das dimensões de vida dos migrantes. Esse fenômeno é expresso em suas relações com as cidades. Nos fluxos percorridos pelas redes, os migrantes haitianos permanecem, ou não, nas cidades, conforme as chances que estas lhes oferecem e os recursos culturais de que dispõem. As situações variam em cada contexto. A análise da interação social desses atores sociais nos lugares pelos quais transitam revela que, no processo de mobilidade e circulação, influencia a qualidade das ligações tanto com membros da sociedade de acolhida quanto com seus conterrâneos que residem dentro ou fora do país de origem (Glick-Schiller; Çaglar, 2009GLICK-SCHILLER, Nina; ÇAGLAR, Ayse. Introduction: Migrants and cities. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 35, n. 2, Londres, 2009, pp.177-202.).

Os recursos materiais e culturais de que dispõem os migrantes, assim como os vínculos construídos nas sociedades de acolhida, em pequenas cidades como Lajeado, são formas de cidadania. Contudo, os direitos de cidadania dos migrantes são incertos. Seguindo Sayad (1998)SAYAD, Abdelmalek. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998., ao migrante se lhe impõe a ilusão de um direito admitido como provisório, condição que pode durar para sempre. O migrante é um “não nacional”, dotado de direitos mínimos, que sofre discriminações e injustiças. É sujeito de discriminação de direito reforçada com a discriminação de fato, dominado por “uma lógica circular, segundo a qual as situações de fato e de direito se sustentam mutuamente” (Sayad, 1998SAYAD, Abdelmalek. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998.:58).

Como estatuto jurídico formal, da ótica autonomista, a universalidade de direitos e obrigações contida no princípio de cidadania é um atributo combativo. A mobilização social, política e cultural dos migrantes é considerada, em si, uma ação cidadã concreta e prática, fundada no supremo “direito a reivindicar direitos” (Mezzadra, 2012MEZZADRA, Sandro. Multidão e Migrações: a autonomia dos migrantes. Revista do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, v. 15, n. 2, 2012, pp.1-38.:77). No caso que analisamos, um dos canais de acesso a essa cidadania é o direito ao casamento entre haitianos no Brasil. A luta desses migrantes por conquistar o direito ao casamento civil no Brasil é estimulada pelo significado religioso do casamento para as igrejas evangélicas frequentadas pelos haitianos. Essas igrejas condicionam a celebração do casamento religioso à formalidade prévia do casamento civil. No começo, eles tinham dificuldade para se casar porque a legislação brasileira exigia Certidão de nascimento atualizada. Para obtê-la, os haitianos tinham que fazer a solicitação à embaixada, pagar R$ 600,00 e esperar seis meses até a chegada da certidão. Como a emissão da certidão era demorada, o documento perdia sua validade perante o governo brasileiro, que estabelecia vigência por 60 dias, o que obstaculizava a realização do casamento.

Um caso forçou a mobilização dos haitianos na luta pelo direito legal de casar em Lajeado, mediada por seu líder, representante dos migrantes no município. Um casal de haitianos na cidade, no ímpeto de se casar, porque a mulher estava grávida, diante das dificuldades burocráticas, forjou um documento que não foi aceito pela pastora da Igreja Cruzada Pentecostal Brasileira. Segundo as narrativas, a adulteração do documento foi reprovada pelos líderes haitianos, gerando um conflito que provocou a cisão da “comunidade” de haitianos. Parte dos membros dessa Igreja se afastou e passou a frequentar outra igreja evangélica. Essa situação desencadeou a intensificação na luta dos haitianos por criar veículos que facilitassem o acesso à documentação necessária para ter direito ao casamento no Brasil.

O primeiro passo dessa luta foi solicitar ao Cartório Civil de Lajeado que permitisse, no lugar da Certidão de nascimento, exigida como documento para casar, a Certidão negativa de casamento, que comprova o estado civil dos noivos como solteiros. O líder compareceu inúmeras vezes ao cartório para pedir resposta a essa demanda, mediada também pela imprensa local. Em viagem do líder haitiano a Brasília, na Embaixada Haitiana no Brasil, foi reiterada a solicitação de que fosse considerada a Certidão negativa de casamento como requisito para a realização do matrimônio.

Depois de superar várias barreiras burocráticas, os haitianos conseguiram que o Oficial do Cartório remetesse o caso ao Fórum da Comarca de Lajeado e que, depois de seis meses, o juiz concedesse o direito casarão casamento. Na celebração de casamento do primeiro casal de haitianos, no qual a primeira autora deste artigo atuou como testemunha, o juiz apresentou os motivos que o levaram à “habilitação, nos termos da lei, baseado nos princípios fundamentais do nosso Estado Democrático e de Direito, princípio da dignidade humana, princípio da igualdade, princípio da cooperação entre os povos” (Justiça ....2018). Em sua fala, o juiz ressaltou a igualdade humana entre os povos e a necessidade do reconhecimento dos mesmos direitos. Nessa mesma ordem de ideias, o líder haitiano manifestou sua alegria ao presenciar a realização do casamento. Para ele, a cerimônia simbolizou o reconhecimento do direito de migrar e de serem os migrantes sujeitos de direitos, validado no tratado entre Brasil e Haiti, até então em desacato no contexto brasileiro.

A conquista do direito ao casamento é uma expressão da participação cidadã dos migrantes em Lajeado. Representa a ampliação “de tecnologias que localizam e legitimam a permanência desses sujeitos como um “sujeito de direitos” (Jardim, 2017JARDIM, Denise. Imigrantes ou Refugiados: tecnologias de controle e as fronteiras. Jundiaí-SP, Paco Editorial, 2017.:91). Enquanto direito conquistado, o casamento denota um fator de mobilidade social dos haitianos, tanto no âmbito da sociedade de acolhida quanto no âmbito das famílias transnacionais haitianas. De acordo com os valores culturais haitianos, as posições dos membros do casal, homens e mulheres, mudam com o casamento. Passam a integrar uma rede que envolve pessoas vinculadas por laços de parentesco a cada um dos cônjuges, com as quais estes têm obrigações morais. A essa mesma argumentação chega Fernandez (2018)FERNANDEZ, Nadine. The Masculine and Moral Self: migration narratives of Cuban husbands in Scandinavia. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World..Berghan Oxford, 2018, pp.274-311., ao se focar nos casamentos migratórios dos cubanos, que abrem as portas para uma nova vida de oportunidades, ajudam a avançar, são estratégias de transformação deles e das famílias que ficam no país de origem, com as quais mantêm vínculo, reiterado no envio de remessas. Bofulin (2018)BOFULIN, Martina. Transnational Matchmaking: Marriage Practices of Chinese Migrant from Qingtian Living in Europe. In: GROES, Christian; FERNANDEZ, Nadine (ed.). Intimate Mobilities: Sexual Economies, Marriage and Migration in a Disparate World. . Berghan Oxford, 2018, pp.46-72. considera que um bom parceiro de casamento é um veículo de mobilidade social.

Significado simbólico do casamento: expressão de (i)mobilidade(s)

Como esboçado no tópico anterior, a luta pelo direito dos migrantes haitianos para casar, em Lajeado, acontece no intuito de cumprir uma obrigação moral e religiosa: a celebração da união por meio de um casamento religioso. O fundamento desse preceito coloca em pauta duas questões: quais são os valores (i)mobilizados no casamento religioso e quais são os fatores de (i)mobilidade envolvidos nessas práticas de casamento. Esse é o assunto discutido neste tópico, tomando como base o argumento de que a religião é um dos pilares do cotidiano no Haiti, mas adquire nova significação no local de destino dos migrantes. Além disso, as igrejas, pela extensão e reprodução de redes de troca e de solidariedade que envolvem, permitem manter a ligação simbólica dos haitianos com o Haiti (Audebert, 2012AUDEBERT, Cédric. Territoires migratoires et réseaux transnationaux en La Diaspora Haïtienn. Rennes, Presses Universitaires, 2012.).

Enquanto ritual, o casamento dá continuidade a uma aprendizagem transmitida de geração em geração. Nele se mobilizam valores e sentimentos culturais expressos de formas diferentes, conforme as circunstâncias. O ritual de casamento contribui para recriar as crenças comuns e o espírito de coletividade, reinventando uma tradição cultural no contexto migratório. Nesse sentido, as crenças e o espírito de coletividade fortalecem “os sentimentos de pertença coletiva ou dependência de uma ordem moral superior que salvam os indivíduos do caos e da desordem” (Segalen, 2002SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2002 [1995].:22). Para Jardim e Peters (2005JARDIM, Denise Fagundes; PETERS, Roberta. Os casamentos árabes: a recriação de tradições entre imigrantes palestinos no sul do Brasil. Revista Anos 90, v.12, n. 21/22, Porto Alegre, jan/dez, 2005, pp.173-225.:214), esse ritual é “a expressão pública de um ethos (...) um mecanismo produtor de legitimidade e solidariedade étnica” (...) “...coloca em circulação um amplo repertório a respeito da ‘tradição’ e sobre o que significa estar de acordo com as tradições” (Jardim, Peters, 2005:218). Nele circulam bens materiais e afetos (Cole; Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.).

Na convivência com os haitianos percebemos que uma das formas de haitianos e haitianas amenizarem as dificuldades da vida de migrante e fortalecerem seus projetos migratórios é unindo-se em casamento com um conterrâneo. Segundo Groes (2016)GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196., uma união que não é baseada no amor ideal, que reproduz núcleos por meio dos quais o Estado define, controla e idealiza algumas formas de migração, de construção familiar e intimidade dos outros. Nos casamentos, os migrantes haitianos promovem, consolidam e ampliam o espírito de solidariedade entre conterrâneos e correligionários no contexto migratório. Serve de apoio emocional e sentimental, protege e fortifica o casal para enfrentar as dificuldades da experiência migratória. São trocas afetivas, no sentido de que têm o poder de afetar pessoas, corpos, mentes, ambições e trajetórias (Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.). Eles procuram seus parceiros de casamento entre compatriotas; não conhecemos casos de casamentos interétnicos.

Em conversas com algumas haitianas, ouvimos que os brasileiros não gostam delas por serem negras. Elas expressam o sentimento de rejeição ao negro na população nativa de Lajeado, herdeira de uma geração que migrou favorecida pelo propósito do Estado brasileiro de branquear a “raça através da miscigenação seletiva e da imigração europeia” (Seyferth, 1995SEYFERTH, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos. Anuário Antropológico, 93, Tempo Brasileiro, 1995, pp.175-203.:181). Na atualidade, nessa cidade, persiste a valorização do branco em contraposição ao negro, ali como categoria pejorativa que denota no senso comum atributos negativos como bandido e pobre7 7 Sobre essa postura é bem explícito um dos múltiplos acontecimentos que presenciamos em Lajeado. Ao entrar no elevador de um prédio onde há uma agência de viagens que presta serviço de envio de remessas de dinheiro para o exterior, da qual os haitianos são fregueses, escutamos a exclamação agitada de um homem dizendo: “acabo de passar um susto, entrei no elevador, um negão veio correndo e eu pensei: pronto vou ser assaltado”. O referido “negão” era um migrante que corria para alcançar a porta aberta do elevador. . As haitianas percebem que por serem negras e estrangeiras são excluídas socialmente como pares possíveis de casamento entre os homens da população local. O corpo é delimitador de fronteiras de (i)mobilidade social dos migrantes, reduz as possibilidades de relacionamentos na sociedade de acolhida.

No contexto migratório, ocorre um entrecruzamento de trajetórias de vida pessoal e socioespaciais que se reverte em casamentos. O casamento é uma prática social mediante a qual se estabelecem alianças entre homens e mulheres com o intuito de construir famílias. No marco do transnacionalismo, a família “é um dos elementos estruturantes”, premissa salientada por Handerson (2015)HANDERSON, Joseph. Diáspora. Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, ano 21, n. 43, Porto Alegre, jan./jun, 2015, pp.51-78. ao se referir à diáspora haitiana. O autor afirma que a família, em suas diversas dimensões: nuclear, extensa ou transnacional, é estruturante na morfologia social. É no âmbito das famílias que se organizam e executam os fluxos de pessoas entre dois ou mais lugares (Machado, 2014MACHADO, Igor (org.). Valadares em família: experiências etnográficas e deslocamentos. Brasília-DF, ABA, 2014.). As famílias desenvolvem estratégias para enfrentar as limitações na qualidade de vida no país de origem e se organizar estruturalmente para dar apoio financeiro às pessoas que migram, arcando com a responsabilidade e os cuidados dos que permanecem (Marinucci, 2007).

As famílias transnacionais abrangem todas as pessoas envolvidas na migração: homens e mulheres, crianças e adultos, quem migra, quem fica, quem retorna, quem transita (Miranda, 2015MIRANDA, Adelina. Editorial. Revue européenne des migrations internationales, v. 31, n. 1, 2015, pp.7-14.). Os membros das famílias transnacionais “vivem em parte ou na maior parte do tempo separados uns dos outros, porém mantidos juntos por criarem algum tipo de sentimento de bem-estar coletivo e unidade, mesmo quando atravessam fronteiras nacionais” (Machado, 2014MACHADO, Igor (org.). Valadares em família: experiências etnográficas e deslocamentos. Brasília-DF, ABA, 2014.:35). A estrutura da família transnacional é configurada por inter-relações entre mobilidades e imobilidades de pessoas, bens, práticas e valores culturais. Em outros termos, o casamento permite a reprodução da morfologia social que garante a continuidade de um projeto familiar transnacional (Machado, 2014MACHADO, Igor (org.). Valadares em família: experiências etnográficas e deslocamentos. Brasília-DF, ABA, 2014.).

O casamento representa o eixo no qual se organizam socialmente os migrantes com base em uma ideologia de gênero, mobilizando recursos culturais do país de origem e do país de destino. E como aponta Mohanty (2008)MOHANTY, Chandra Talpade. Bajo los ojos de occidente. Academia Feminista y discurso colonial. In: SUÁREZ NAVAZ, Liliana; HERNÁNDEZ, Aída (ed.). Descolonizando el Feminismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes. Madrid, ed. Cátedra, 2008., mais significativo do que a atribuição de tarefas de acordo com o gênero é o significado que o conteúdo da divisão sexual do trabalho assume nesse contexto. Na maior parte dos casos, a atribuição de tarefas por gênero tem uma origem ideológica evocada nas cerimônias de casamento.

Os casamentos entre haitianos fundamentam-se em valores culturais ligados às igrejas evangélicas. “A gente acredita que se vive com uma mulher sem casar até morrer não vai se salvar, quem está na Igreja procura sempre casar”, disse uma das lideranças dos haitianos na região. As cerimônias de casamento entre migrantes haitianos, em Lajeado, eram celebradas na Igreja Cruzada Pentecostal Brasileira. Hoje são celebradas, na língua nativa dos migrantes (crioulo), em duas igrejas criadas por haitianos, a Igreja Evangélica de Jesus Cristo Ressuscitado e a Igreja Haitiana Betel de Lajeado. Nelas observa-se um discurso pedagógico e conservador sobre as tarefas que devem assumir o homem e a mulher, discurso em que ecoam os pressupostos religiosos de igrejas pentecostais. A esse respeito é elucidativa a fala de um haitiano apoiada em ensinamentos bíblicos: “O homem é quem manda, está na frente, isso está na Bíblia”. Esse princípio é reiterado nas cerimônias religiosas de casamento quando a pastora da Igreja evangélica, da qual haitianos são adeptos, apoiada na passagem bíblica do livro de Efésios, diz durante a celebração que, a partir da união matrimonial, a mulher “deve se sujeitar ao marido”. Citando o enunciado dos Efésios, capítulo 5, versículo 22 a 24, disse: “Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor, pois o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da Igreja. Assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres estejam em tudo sujeitas a seus maridos”. Nesse sentido, o casamento é a ritualização dessa ideologia de gênero.

Como observa Altivo (2016)ALTIVO, Bárbara Regina. “Dever e prazer no casamento-empresa: transações regulares de controle do amor segundo a Igreja Universal”. Galaxia, n. 32, São Paulo, ago. 2016, pp.176-187 [http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542016224434 - acesso em: 19 abr. 2018].
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em sua pesquisa na Igreja Universal Reino de Deus, os discursos das igrejas pentecostais visam domesticar a impulsividade do homem e da mulher nas dinâmicas das relações amorosas. É uma ideologia fundamentada em um sistema de dominação no qual a desigualdade de gênero se articula à religião. Pessar e Mahler (2001)PESSAR, Patricia R; MAHLER, Sarah J. Gender and Transnational Migration. Paper given to the conference on Transnational Migration: Comparative Perspectives. Princeton University, 30 June-1 July 2001 [https://www.incedes.org.gt/Master/pessarsesentatre.pdf – acesso em: 27 abr. 2023].
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afirmam que, no contexto migratório a religião é uma escala institucional relevante para a reafirmação e a reconfiguração das relações e ideologias de gênero ao longo do espaço transnacional. Crenças religiosas e práticas reforçam sistemas morais baseados na obrigação e na reciprocidade entre os sexos.

Para os haitianos em Lajeado, o casamento oferece a liberdade necessária para viver a relação sexual com o parceiro ou a parceira sem atentar contra a moral religiosa. Esse evento mobiliza valores culturais ligados a uma moral religiosa que regula as uniões entre homens e mulheres e reforça práticas de criação e reprodução das diferenças sociais entre os domínios feminino e masculino nas famílias transnacionais. À luz das teorias de Piscitelli (2009a), as distinções socialmente construídas de feminilidade e masculinidade se entrelaçam com diferenças de raça, classe social, nacionalidade e idade, já que são múltiplas as dimensões de identidade que formam, disciplinam e posicionam as pessoas e as maneiras como elas pensam e atuam, situadas dentro de hierarquias de poder que elas não têm construído (Pessar; Mahler, 2001PESSAR, Patricia R; MAHLER, Sarah J. Gender and Transnational Migration. Paper given to the conference on Transnational Migration: Comparative Perspectives. Princeton University, 30 June-1 July 2001 [https://www.incedes.org.gt/Master/pessarsesentatre.pdf – acesso em: 27 abr. 2023].
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).

Acerca das desigualdades nas relações de gênero no Haiti, Braum et al. (2014)BRAUM, Pedro; DALMASO, Flávia, NEIBURG, Federico. Gender issues. Relations between men and women in the low-income districts of Port-au-Prince. Viva Rio, NuCec, UFRJ, 2014. postulam que são atravessadas por interdependências, solidariedades, tensões, conflitos, ambiguidades e ambivalências, sendo a solidariedade e o apoio mútuo fundamentados em ideias e ideais cristãos e, às vezes, do vodu. A narrativa bíblica da criação do homem e da mulher é disseminada para dar suporte à complementariedade e à cooperação entre homens e mulheres. No universo empírico estudado, há uma desigualdade de gênero instituída culturalmente que se reflete nas relações entre homens e mulheres em espaços públicos – fenômeno observado ao longo de cinco anos de interlocução com haitianos e haitianas. Os homens são os porta-vozes das mulheres em decisões que moldam suas vidas. De modo geral, eles têm melhor domínio do português. Para qualquer decisão que as mulheres vão tomar, consultam seus cônjuges – na compra de roupa, sair para passear, buscar atendimento médico, entre outros. Nos espaços públicos pelos quais andam, observa-se a mulher atrás do homem. As lideranças nas igrejas, em rituais religiosos e demais atividades coletivas, como os ensaios do coral e representações teatrais, são masculinas; as mulheres são discípulas e peregrinas. Contudo, nessa experiência migratória não se pode desconhecer o poder de agência das mulheres, a coragem e a criatividade que enfrentam diante de condições adversas. Por mais que estejam submetidas a enormes desigualdades, “cada uma vai encontrar modos de lidar com as contingências e encontrar saídas, percursos e modos singulares de configurar sua autonomia” (Marques, Terrier, 2017:5). Através de práticas e discursos, negociam relacionamentos, interesses conflitantes e hierarquias de poder e privilégio (Pessar; Mahler, 2001PESSAR, Patricia R; MAHLER, Sarah J. Gender and Transnational Migration. Paper given to the conference on Transnational Migration: Comparative Perspectives. Princeton University, 30 June-1 July 2001 [https://www.incedes.org.gt/Master/pessarsesentatre.pdf – acesso em: 27 abr. 2023].
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). Considerando as diferenças individuais nesses movimentos, Pessar e Mahler (2001)PESSAR, Patricia R; MAHLER, Sarah J. Gender and Transnational Migration. Paper given to the conference on Transnational Migration: Comparative Perspectives. Princeton University, 30 June-1 July 2001 [https://www.incedes.org.gt/Master/pessarsesentatre.pdf – acesso em: 27 abr. 2023].
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, apoiadas em Massey, argumentam que a localização social das pessoas afeta o acesso por elas a recursos e à mobilidade através de espaços transnacionais, mas também sua agência como iniciadoras, refinadoras e transformadoras dessas condições.

Ao acompanhar a trajetória de vida de algumas haitianas em Lajeado, percebemos que ali o poder de agência das mulheres é conquistado com o decorrer do tempo na experiência migratória. As mulheres não se submetem passivamente aos desejos dos homens ou às leis da migração, elas tratam ativamente de configurar suas trajetórias (Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.). Como sujeito, são constituídas pela experiência, sendo o domínio da língua um indicador de poder de agenciamento. É, por exemplo, o caso de uma haitiana que se casou em 2017, argumentando que procurava alguém que a apoiasse quando se sentia triste. Três anos depois, é uma das líderes religiosas da Igreja dos haitianos, conduz as atividades dirigidas às crianças, teve um filho e se sente uma mulher de sucesso, já que ela e o marido compraram um carro, que ambos dirigem. A ação pessoal é “balizada por ditames morais e regras relacionais, associadas, neste caso, às configurações de valores religiosos, de caráter apriorístico, coletivo e imperativo” (Duarte, 2013DUARTE, Luiz Fernando Dias. “Aonde caminha a moralidade?” cadernos pagu (41), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, jul./dez. 2013 [http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200003 - acesso em: 22 set. 2018].
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:21).

Para Bourdieu (2003)BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3aed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003. Tradução: Maria Helena Kuhner., a divisão entre os sexos configura a “ordem das coisas” no mundo social, e incorporada nos corpos e nos habitus dos agentes funciona como sistemas de percepção e de ação. Sobre o assunto, Duarte (2013)DUARTE, Luiz Fernando Dias. “Aonde caminha a moralidade?” cadernos pagu (41), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, jul./dez. 2013 [http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332013000200003 - acesso em: 22 set. 2018].
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postula que a naturalização da desigualdade de gênero corresponde a uma configuração “tradicional” que diverge do ethos moral moderno, dependente de uma demarcação moral abrangente, relacional e principal. Já Mohanty (2008)MOHANTY, Chandra Talpade. Bajo los ojos de occidente. Academia Feminista y discurso colonial. In: SUÁREZ NAVAZ, Liliana; HERNÁNDEZ, Aída (ed.). Descolonizando el Feminismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes. Madrid, ed. Cátedra, 2008. chama a atenção para o perigo de uma abordagem reducionista das diferenças entre os sexos, pensando-as unicamente com base na noção de dominação masculina. Prega a ruptura com uma visão generalizada da subordinação que encobre a complexidade da vida das mulheres. As mulheres não são produzidas por diferenças de gênero senão por estruturas familiares, o colonialismo e a organização do trabalho. Elas não são produtos do que são biológica e socialmente, mas dos significados que adquirem nas interações sociais, das práticas que as constituem como esposas, e nesse caso, futuras mães. Um ano depois do casamento, todos os casais de haitianos que conhecemos estavam gestando o primeiro filho.

Na cerimônia de casamento, os migrantes desempenham papéis sociais diferentes. Os líderes religiosos se encarregam da organização e da preparação do cerimonial na igreja. Durante o ritual, falam na língua nativa, o crioulo, ou, no caso de a celebração ser realizada na instituição religiosa brasileira, traduzem para o crioulo a fala da pastora ou do pastor da Igreja, porque a maior parte dos haitianos não domina o português. Como acontece em qualquer celebração de casamento, na ausência de familiares, os amigos mais próximos do casal ajudam na preparação da noiva, de vestido, cabelo, buquê, no transporte e no preparo das comidas para recepcionar os convidados. Em síntese, a festa mobiliza a “comunidade” haitiana e cada um assume seu papel na organização da encenação de uma vida grandiosa.

No âmbito da experiência migratória, por intermédio dos rituais de casamento, em Lajeado, os haitianos rompem com a monotonia do cotidiano e expressam valores culturais e emoções reprimidos nos espaços de trabalho e doméstico. Assim, “a festa instaura e constitui um outro mundo, uma outra forma de experienciar a vida social, marcada pelo lúdico, pela exaltação dos sentidos e das emoções [..]” (Perez, 2002PEREZ, Léa Freitas. Antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro (org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, Vozes, 2002, pp.15-58.:19). Tanto nos rituais religiosos quanto nas festas comemorativas dos casamentos, os haitianos manifestam-se com cantos, músicas e danças.

Além dos rituais de casamento expressarem o ethos coletivo dos migrantes, um movimento de (re)criação de práticas da cultura religiosa das igrejas pentecostais no país de origem, é a oportunidade da manifestação de uma grandiosidade na sociedade de acolhida, evadindo a exposição pública das carências e problemas que enfrentam, como desemprego. Em seu estudo entre palestinos, Jardim e Peters (2005JARDIM, Denise Fagundes; PETERS, Roberta. Os casamentos árabes: a recriação de tradições entre imigrantes palestinos no sul do Brasil. Revista Anos 90, v.12, n. 21/22, Porto Alegre, jan/dez, 2005, pp.173-225.:209) salientam que o caráter público da festa expressa uma relação política com a localidade, “uma interface com a sociedade local” na qual estão inseridos. “As festas são um momento importante de sociabilidade” (Jardim; Peters, 2005JARDIM, Denise Fagundes; PETERS, Roberta. Os casamentos árabes: a recriação de tradições entre imigrantes palestinos no sul do Brasil. Revista Anos 90, v.12, n. 21/22, Porto Alegre, jan/dez, 2005, pp.173-225.:209), congregam grande número de pessoas. “Pouco importa se a festa é religiosa ou profana, o que vale é que ela é o espaço privilegiado de reunião de diferenças, o espaço de figurações sociais, de assembleia coletiva e de sociabilidade” (Perez, 2002PEREZ, Léa Freitas. Antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro (org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, Vozes, 2002, pp.15-58.:35). O luxo das festas de casamento de haitianos lembra os apontamentos de Jardim e Peters (2005)JARDIM, Denise Fagundes; PETERS, Roberta. Os casamentos árabes: a recriação de tradições entre imigrantes palestinos no sul do Brasil. Revista Anos 90, v.12, n. 21/22, Porto Alegre, jan/dez, 2005, pp.173-225. referentes aos palestinos. Com a suntuosidade na encenação do casamento – para o quê poupam dinheiro por cerca de dois anos, os migrantes buscam legitimar o amplo valor dessa prática cultural frente à sociedade local.

Outras pesquisas que se debruçam sobre diversos tipos de mobilidade transnacional (Seyferth, 2011SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, 2011, pp.47-62.; Groes, 2016GROES, Christian. Men Come and Go, Mothers Stay: Personhood and Resisting Marriage among Mozambican Women Migrating to Europe. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016. pp.169-196.; Cole, 2016COLE, Jennifer. Giving Life: Regulating Affective Circuits among Malagasy Marriage Migrants in France. In: COLE, Jennifer; GROES, Christian (org.). Affective Circuits African Migrations to Europe and the Pursuit of Social Regeneration. The University of Chicago Press, 2016 [https://ereader.perlego.com/1/book/1851026/15 - acesso em: 14 mar. 2018].
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; Piscitelli, 2009b) mostram que, além do significado simbólico, o casamento tem um significado prático. Na maior parte dos casos, é pré-requisito para obter a residência legal no país de acolhida. No caso dos haitianos em Lajeado, o casamento entre conterrâneos permite constituir famílias com filhos, com o quê podem obter, por um lado, a cidadania brasileira, por outro, ocupar a posição de “casados” que denota prestígio no âmbito das redes familiares transnacionais. Nos termos de um dos interlocutores: “mesmo os que não estão na Igreja e gostam de viajar precisam do documento de casamento”, pois, no Haiti, a Certidão de casamento é um documento oficial necessário para viajar e indispensável para que o casal separado pela migração reivindique o direito à reunificação familiar.

Considerações finais

Observar as idas e vindas dos migrantes haitianos em Lajeado – e ao mesmo tempo seu interesse em estabelecer uniões matrimoniais com conterrâneos na cidade – permitiu revelar a importância de aprofundar estudos sobre práticas sociais, como o casamento, e a partir delas analisar a dialética entre elementos de mobilidade e imobilidade imanentes à experiência migratória. Esses elementos são expressos na confluência entre o fixo (casar) e o não fixo (Certidão de casamento como documento que habilita a mobilidade). E as mobilidades, por sua vez, articuladas às relações de gênero que evocam especificidades próprias das trajetórias de homens e mulheres, contrariando a universalização dessas categorias.

No estudo etnográfico e realizado na cidade de Lajeado, observamos a mobilização dos haitianos no âmbito da sociedade de acolhida para ter o direito a casar. A certidão do casamento civil é apontada como um documento que facilita a mobilidade física dos haitianos no país de origem. No Haiti, este documento é válido oficialmente para se mobilizar para outros países quando o cônjuge reside no exterior. E na diáspora, no contexto da pequena cidade que atravessa esse processo migratório, o casamento é uma prática por meio da qual os haitianos mobilizam valores culturais fundamentados em uma ideologia de gênero que visa atender interesses da vida prática. Nesse sentido, não se movimentam apenas pessoas, mas valores e ideologias religiosas que reforçam o elo tanto com o Haiti quanto com os locais pelos quais transitam e transitaram.

Essa interconexão entre o fixo e o não fixo no contexto migratório, examinada a partir do casamento, se percebe em diversas situações. Uma delas é no significado do casamento, entendido como a consolidação e a oficialização da relação de um casal constituído entre conterrâneos para formar uma família. Paralelamente, no âmbito do contingente migratório, a condição de casado é um fator de mobilidade social. Quando casam, os migrantes passam a serem reconhecidos socialmente pelos outros migrantes e por suas respectivas famílias como casal. Os namoros entre solteiros acontecem sob vigilância da comunidade religiosa haitiana, fundamentada nos preceitos religiosos das igrejas evangélicas às quais estão vinculados, que procuram inibir a liberdade dos correligionários de terem relações sexuais antes do casamento.

Por último, a mobilidade social gestada com o casamento não se dá apenas no âmbito do contingente de migrantes. Ela também ocorre no âmbito da sociedade de acolhida, em Lajeado. Os migrantes, ao se casarem, passam a ocupar uma nova posição social enquanto migrantes, adquirem um status que dá vantagens, como a facilidade de obter crédito ao ter um parceiro que responda pela dívida. Em suma, são diversas as (i)mobilidades que perpassam a prática do casamento de haitianos em Lajeado.

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  • 1
    Dado fornecido por um haitiano, funcionário do CRAS de Lajeado, em 21 de julho de 2020, no debate “Migrantes e enchentes - o que acontece quando a água baixa?”, no canal da Rede Soberania, no Youtube [www.facebook.com/watch. - acesso em 21 julho 2020].
  • 2
    Região colonizada há quase 200 anos por alemães e italianos.
  • 3
    Conforme dados do cartório do município, totalizam 16 casamentos no período de 2015 a 2017, além dos casamentos que acontecem na cidade vizinha, Estrela, onde as exigências para casar-se são menores do que em Lajeado, já que naquele município não é exigido aos migrantes uma comprovação de estado civil, “valem-se da boa-fé”, segundo um funcionário do cartório.
  • 4
    No caminho para chegar aos Estados Unidos, atravessam fronteiras terrestres no Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Guatemala e México. Em muitos dos trechos, feitos a pé, foram vítimas de coiotes, passaram fome e alguns morreram. No México, solicitavam autorização para ingressar nos Estados Unidos como asilados políticos, dali viajavam até a Califórnia, onde ficavam presos até que um parente que morasse nos Estados Unidos os buscasse.
  • 5
    A presença haitiana no Chile é revelada pelos dados apresentados pelo Banco Central chileno, que indicam que, em 2016, a remessa de dinheiro do Chile para o Haiti chegou a 36 milhões de dólares, aumentando 386,48% em relação ao ano anterior, quando totalizou 7,4 milhões de dólares (Para..., 2016).
  • 6
    Em nossos encontros, as mulheres se referiam ao sexo como um dos papéis desempenhados por elas nos relacionamentos conjugais, nessa experiência migratória. Uma citação de Jordão (2017)JORDÃO, Roziane da Silva. A mulher haitiana em Porto Velho, Rondônia: imigração e gênero. Dissertação Mestrado em Letras, Fundação Universidade Federal de Rondônia, Núcleo de Ciências Humanas. UNIR, Porto Velho, 2017. em sua dissertação é elucidativa desse fenômeno. Conta o pedido de um haitiano para que a pesquisadora servisse de mediadora com as mulheres. “Fale que preciso de mulher para sexo, porque a minha esposa ficou no Haiti e eu vou demorar muito para ir de novo para casa. (...) se ela veio sozinha para aqui, ela também está precisando de um homem” (Jordão, 2017JORDÃO, Roziane da Silva. A mulher haitiana em Porto Velho, Rondônia: imigração e gênero. Dissertação Mestrado em Letras, Fundação Universidade Federal de Rondônia, Núcleo de Ciências Humanas. UNIR, Porto Velho, 2017.:84).
  • 7
    Sobre essa postura é bem explícito um dos múltiplos acontecimentos que presenciamos em Lajeado. Ao entrar no elevador de um prédio onde há uma agência de viagens que presta serviço de envio de remessas de dinheiro para o exterior, da qual os haitianos são fregueses, escutamos a exclamação agitada de um homem dizendo: “acabo de passar um susto, entrei no elevador, um negão veio correndo e eu pensei: pronto vou ser assaltado”. O referido “negão” era um migrante que corria para alcançar a porta aberta do elevador.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
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