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O consultório sentimental Madame D’anjou: Deocélia Vianna e as experiências femininas no rádio

The Emotional Consultations of Madame D'anjou: Deocélia Vianna and Female Experiences on Radio

Resumo

Este artigo tem como objeto o programa radiofônico de consultório sentimental Madame D’anjou, apresentado pela redatora e militante comunista Deocélia Vianna entre os anos de 1952 e 1953. A hipótese aqui apresentada é que, por meio dos problemas levantados pelas ouvintes, é possível compreender questões relevantes para as mulheres daquele período, divididas nas seguintes categorias: sexualidade, trabalho, direitos, rádio e saúde. As fontes utilizadas são as cartas de ouvintes e os roteiros da atração, sob guarda do CEDOC/Funarte, no arquivo pessoal de Deocélia Vianna.

Madame D’anjou; Deocélia Vianna; Rádio brasileiro; Consultório sentimental

Abstract

The objective of this article is the radio program of Madame D'anjou that provided emotional advice, presented by the writer and communist activist Deocélia Vianna in 1952 and 1953. The hypothesis presented here is that the problems raised by listeners can help us understand issues important to women in that period, divided into the following categories: sexuality, work, rights, radio and health. The sources used are letters from listeners and the scripts of the program, held by CEDOC/Funarte, in Deocélia Vianna’s personal archive.

Madame D'anjou; Deocélia Vianna; Brazilian radio; Emotional advice

Deocélia Vianna1 1 Quando nasceu, foi registrada como Deuscélia por seus pais. A alteração para forma utilizada aqui neste trabalho somente se deu no final da década de 1960, como pudemos constatar por meio da consulta à documentação reunida em seu arquivo. (1914-1987) é comumente lembrada por dois papeis fundamentais que exerceu com muito orgulho dentro de uma importante tríade familiar da cultura brasileira: mãe de Vianninha e esposa de Oduvaldo Vianna2 2 Oduvaldo Vianna (1892-1972) foi um dos principais dramaturgos do teatro brasileiro nas décadas de 1920 e 1930. Ao longo de seus 50 anos de carreira, também atuou como roteirista e diretor de cinema e desempenhou papel fundamental na profissionalização do rádio no país. Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) foi ator e dramaturgo. Escreveu para o teatro e para a televisão obras como a peça Rasga Coração e os roteiros do programa A Grande Família. . No entanto, ela também construiu uma carreira própria para o rádio: escreveu diversas radionovelas e roteiros para vários programas. Um deles, intitulado Madame D’anjou, proporcionou-nos uma incrível jornada por um conjunto de roteiros e de cartas de mulheres da capital paulista e arredores.

Dedicado a responder dúvidas de ouvintes, o programa desempenhava a função de consultório sentimental, mobilizando inúmeras mulheres a transpor suas experiências para o papel, em busca de um aconselhamento para suas angústias. Deocélia assumiu a atração irradiada pela rádio Difusora de São Paulo por cerca de um ano, entre março de 1952 a fevereiro de 1953, conforme registros presentes em seu arquivo pessoal, sob a guarda do Centro de Documentação e Pesquisa da Fundação Nacional de Artes (CEDOC/Funarte).

Pretendemos examinar a importância do programa para as ouvintes naquele espaço urbano em rápida transformação por meio da análise dos principais assuntos encaminhados pelas consulentes, as quais buscavam referências de como agir no mundo na autoridade de Deocélia, investida de Madame D’anjou. Por meio de alguns casos selecionados, aproximamo-nos do cotidiano dessas mulheres e das sensibilidades que lhes dão sentido, ao mesmo tempo que observamos certas tensões e insatisfações em relação aos modelos comportamentais vigentes.

Outro aspecto que desejamos destacar é a singularidade da experiência das ouvintes do programa aqui analisado. As queixas e dúvidas registradas nas cartas por elas enviadas apresentam inúmeras evidências de sua condição social periférica, além de sua dependência econômica junto aos “chefes” de família, fossem eles seus pais ou maridos. O suporte das missivas, ou seja, suas características materiais, também contribuiu diretamente para a composição deste complexo mosaico de vivências que buscamos aqui compreender, após explorarmos linhas e linhas com confissões, pedidos e alguma dose de imaginação.

Além disso, esse artigo ainda tem como objetivo lançar luz sobre a trajetória de Deocélia, comunista histórica e profissional do rádio. A seguir, na primeira seção, abordaremos rapidamente alguns aspectos de sua carreira como redatora e sua importância para a consolidação de um sistema de produção radiofônico a partir dos anos de 1940. Considerada como grande incentivadora e companheira de Oduvaldo Vianna, desejamos ressaltar sua contribuição para a área e, assim, restituir-lhe o devido protagonismo.

Deocélia Vianna: companheira e protagonista do rádio brasileiro

Deocélia Vianna colaborou diretamente com Oduvaldo Vianna, considerado um dos mais produtivos autores de radionovelas no Brasil (Calabre, 2007CALABRE, Lia. Sonhos sonoros: as radionovelas. In: VIANA, Oduvaldo. Herança do ódio. Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa, 2007, pp. 27-43.). No entanto, também se notabilizou por construir uma carreira própria. À medida que a demanda por suas obras crescia, Oduvaldo começou a transferir a responsabilidade de algumas atrações para sua esposa, cuja sua principal atribuição era, até então, datilografar o material (Vianna, 1984).

Alguns de seus programas passaram a ser incumbência de Deocélia que, para dar conta dos diversos contratos firmados, começou a participar ativamente da produção. Mesmo quando Deocélia escrevia sozinha, o nome de Oduvaldo também constava na autoria de muitas de suas obras, pois as novelas do autor eram “uma coqueluche em todo Brasil [...]. Só o fato de se anunciar um trabalho de Oduvaldo Vianna despertava desusado interesse. E o êxito já estava, antecipadamente, garantido” (Murce, 1976MURCE, Renato. Bastidores do Rádio: fragmentos do rádio de ontem e de hoje. Rio de Janeiro, Imago, 1976.:150).

Deocélia também era apresentada nas revistas especializadas em programação de rádio dos anos 1950, como “uma das nossas grandes escritoras de novelas radiofônicas” e, juntamente com seu marido, faziam “do rádio paulista um dos melhores da América Latina” (Radiolar, n.13, 1951:18-20).

Em 1952, a radialista Sarita Campo, responsável pela programação feminina da Difusora – onde Oduvaldo era diretor de radioteatro –, transferiu-se para a Rádio Nacional de São Paulo. Deocélia foi contratada para assumir o posto e a notícia foi anunciada pela emissora, conforme publicidade divulgada no jornal Diário da Noite, de São Paulo, em 5 de março de 1952: “Deuscélia Viana e Oduvaldo formam a dupla mais popular do rádio brasileiro. Conhecedora dos problemas femininos, pois além de escritora emérita é excelente dona de casa, Deuscélia volta agora a manter contato mais direto com o microfone”.

A saudação a Deocélia e Oduvaldo Vianna – apontando que era de amplo conhecimento a colaboração intelectual existente entre o casal – ressalta o talento da redatora enquanto escritora e dona de casa. Ou seja, a escolha perfeita para assumir o cargo de produtora dos programas femininos da Difusora. Sob sua responsabilidade, ficaria o programa Vesperal das Moças, composto por sequências como Madame D’anjou. Difusora Falando à Mulher e o Teatrinho das 5 Horas.

Airton Rodrigues comentou em sua coluna “Rádio e TV” (Diário da Noite, 03/04/1952:21) quais eram suas expectativas para a nova empreitada de Deocélia Vianna, “produtora emérita de numerosos ‘scripts’ radioteatrais”. Entretanto, a perspectiva que prevalece nessa e em várias outras mensagens é de mentoria de Oduvaldo sobre a esposa. Segundo Rodrigues, a então produtora se desenvolveu intelectualmente “nos longos anos de contato, ao lado do marido, com as artes e os artistas”.

Salienta, ainda, sua experiência “como excelente dona de casa e mãe dedicada”. Mas, sobretudo devido às suas próprias habilidades com a escrita, é que Deocélia foi capaz de imprimir seu estilo a uma grade de programas que já estavam no ar e que provavelmente possuíam ouvintes cativos. Conforme a avaliação do crítico: “o Vesperal da Moças mudou radicalmente, embora conserve quadros antigos. Deocélia deu-lhes novo ritmo e nova orientação [...]” (Diário da Noite, 03/04/1952:21).

Foi durante esse breve período em que esteve na Difusora que Deocélia Vianna desenvolveu sua carreira para o rádio de maneira mais contínua e solo, chegando, inclusive, a receber o Prêmio Roquete Pinto como melhor redatora de programas femininos de 1952. Se um ano pode ser considerado um período curto de atividade, a premiação e a grande quantidade de roteiros e de cartas de ouvintes que foram preservados em seu arquivo nos dá uma percepção do quotidiano de intenso trabalho que caracterizava o rádio em São Paulo no início da década de 1950.

Sua passagem pela Difusora terminou quando Oduvaldo Vianna foi dispensado repentinamente, em 1953. Em solidariedade ao marido, Deocélia apresentou sua demissão. Continuou colaborando com Oduvaldo, durante os anos seguintes, na produção de radionovelas e, em menor escala, em projetos próprios para rádio, revistas e televisão.

Madame D’Anjou: das páginas das revistas para as ondas do rádio

Madame D’Anjou fazia parte da grande diversidade de programas que o rádio brasileiro oferecia a seus ouvintes na década de 1950. Criado pelo radialista e diretor de cinema Otávio Gabus Mendes, o consultório sentimental já estava no ar sob o comando da radialista Sarita Campos, antes da chegada de Deocélia Vianna em 1952.

Figura 1
: Anúncio do programa Madame D’Anjou. 1952.

Madame D’Anjou tinha um formato interativo: as ouvintes mandavam por carta seus questionamentos, a maioria delas assinadas com pseudônimos. As missivas eram dramatizadas, conferindo maior dinâmica e emoção ao programa. Certamente, essa transformação das queixas em roteiros, com a atuação de radioatores, era um de seus atrativos – era uma espécie de pequeno radioteatro, gênero de grande sucesso na época, baseado na experiência de pessoas “comuns”.

O elenco não era fixo e, em média, eram apresentados de dois a três casos por dia, mas há roteiros que contém apenas um. A princípio, a própria autora acreditava que eram cartas forjadas quando ouvia programas similares. No entanto, ao assumir o consultório sentimental, surpreendeu-se com a grande procura por parte do público: “fiquei espantada quando vi sobre a minha mesa um pacote de cem a cento e tantas cartas diárias” (Vianna, 1984:116).

A atração era apresentada às terças, quintas e sábados, às 16:30h, abrindo a programação da Rádio Emoções Valery, patrocinada por esta empresa de cosméticos. Pouco tempo após Deocélia Vianna ser destacada para o seu comando, sua periodicidade passou de três para cinco dias da semana, indicando-nos que a recepção da mudança pelos ouvintes foi bastante positiva. Para boa parte do público, esse momento significava a expectativa de ouvir sua própria vida representada pelo casting da Rádio Difusora de São Paulo.

O consultório sentimental integrou, durante muito tempo, o horizonte de referências culturais de diversas mulheres, pois, por meio dele, seria possível experimentar um compartilhamento de vivências, sentimentos e dinâmicas sociais. Suas origens estão atreladas às da imprensa voltada para o público feminino: Ladies Mercury, o primeiro periódico dedicado a mulheres, fundado em 1693 na Inglaterra, já apresentava uma seção do gênero (Buitoni, 1986BUITONI, Dulcília H. S. Imprensa feminina. São Paulo, Ática, 1986.).

No Brasil, a circulação de revistas femininas se popularizou no século XIX. Essas publicações contribuíram para a difusão e para a normatização de comportamentos, ratificando o modelo socialmente atribuído à mulher: submissa, virtuosa, afável, frágil, ingênua, emotiva, abnegada e distinta (Bassanezi, 2008BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2008, pp.607-639.). Se as revistas femininas podem ser consideradas práticas discursivas normatizadoras de comportamentos e disseminadoras de uma civilidade própria e adequada à mulher, talvez uma das seções que melhor ilustre essa afirmativa seja o consultório sentimental e seu teor pedagógico.

Quando transportado para o rádio, como no caso de Madame D’Anjou, certamente atingiu maiores quantidade e diversidade de público em relação às leitoras de magazines. Pesquisas de audiência realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro identificaram a predominância das mulheres dentre os radiouvintes (Calabre, 2004CALABRE, Lia. A era do rádio. 2. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.). O rádio virou o seu grande companheiro, participando da rotina e levando a sensação de modernização para seus lares. “Pois o rádio transformava a vida dos pobres, e sobretudo das mulheres pobres presas ao lar, como nada fizera antes” (Hobsbawn, 1995:194).

“Prezada senhora”: as consulentes de Madame D’Anjou no arquivo de Deocélia Vianna

Por ser um programa diário, existe uma grande quantidade de roteiros no arquivo pessoal de Deocélia. São 225 programas, datados de 11 de março de 1952 a 27 de fevereiro de 1953. Nele também se encontra preservada parte da correspondência enviada para a redatora: identificamos 159 missivistas, cujas cartas são datadas de 28 de janeiro de 1952 a 20 de fevereiro de 1953. Além daquelas enviadas da cidade de São Paulo (a grande maioria) e de outras cidades do estado (Santo André, São Caetano do Sul, Marília, São Roque, São Vicente, Santos, São Carlos, Caçapava, Carapicuíba, Franco da Rocha), há também algumas missivas de Minas Gerais (Muzambinho e Uberaba), Paraná (Irati, Jaboti), Rio Grande do Sul (São Borja, Rio Grande) e até mesmo de Belém do Pará.

A quantidade de cartas é distribuída irregularmente ao longo dos meses. Não foi possível identificar se essa oscilação é resultante de algum efeito do processo de seleção operado por Deocélia Vianna e sua equipe de produção ou se esses documentos se perderam no decorrer dos anos. Não podemos deixar de mencionar as anotações existentes em algumas cartas, o que evidencia a existência de um método de seleção de cartas por parte da produção. Feitas à lápis, na sua parte superior, marcam a data da chegada na emissora e a data em que a resposta foi ao ar.

Figuras 2
Carta da ouvinte “Coração Aflito” (1952).

Figuras 3
Carta da ouvinte “Coração Aflito” (1952).

A atividade manuscrita prevalece, constando apenas duas missivas datilografadas no conjunto. Esse dado nos indica duas possibilidades: que a grande maioria não dispunha de máquina de escrever ou que escolheram deliberadamente escrever à mão como forma de buscar uma maior intimidade com a interlocutora.

As epístolas foram redigidas de acordo com algumas estratégias discursivas de aproximação, as quais englobam apresentações, elogios, uso do próprio nome da radialista, e não do nome da personagem que interpretava — sugestão de uma identidade comum enquanto mães – e o apelo das mais jovens à experiência de Madame D’Anjou. Intimidade e um tom confessional são marcas indeléveis dessa correspondência, fundamentais para o estabelecimento de uma relação de autoridade e confiança entre consulentes e conselheira: “Escrevo-lhe estas poucas linhas pedindo a senhora que ajude-me a ter mais coragem na vida” (Fracassada da Capital. São Paulo, 19/02/1952) / “Sou sua ouvinte assídua, ligando todas as tardes na Difusora meu aparelho radiofônico, precisamente às 4:25 horas para ouvir sua palavra amiga, reconfortante e acariciadora” (Loirinha Triste da Capital. São Paulo, 23/04/1952).

As missivistas ressaltam seu estado de nervos e seu desespero. Outros sentimentos também são evocados, como vergonha, arrependimento, dúvida. Para que um problema exista, deve haver uma tensão entre a ação individual, ou sua intenção, e as convenções sociais. O conselho é concedido de modo a acatar as normas sociais vigentes. É carregado de exemplaridade e, dessa forma, de juízo de valor sobre o que dever ser feito e o que deve ser evitado (Garis; Tardón, 2008GARIS, Ana Victoria; TARDÓN, María Marta. Corazones en conflicto. El consultorio sentimental en la prensa de Buenos Aires. Revista LIS. Letra Imagen Sonido. Ciudad Mediatizada, ano 1, n. 2, ago./dez. 2008, pp.89-105.). Sempre na tentativa de convencer que eram merecedoras de ocupar a pauta do programa.

Em seus conselhos, Deocélia também lançava mão de recursos para reforçar a proximidade para com suas ouvintes, como “minha amiga” para mulheres casadas e “minha amiguinha”, para as mais jovens. Colocava-se sempre disponível, ao final de sua recomendação, para responder qualquer outra dúvida, ou solicitava que a consulente enviasse mais notícias sobre a sua situação. E dessa forma se estabelecia um vínculo de confiança eficaz que pode ser considerado o principal motor do programa.

Nem todas as cartas das ouvintes informam a idade da autora. Ainda assim, foi possível avaliar a faixa etária das missivistas. Embora formado por mulheres com idades variadas, há uma predominância de jovens de até 18 anos e de mulheres de 19 a 29 anos. Desse modo, encontramos a prevalência de temas que convencionalmente diziam respeito ao universo de mulheres inseridas nessas fases da vida: problemas sentimentais envolvendo namoros, noivados e casamentos. Porém, sob essa insuspeita “normalidade”, é possível acessar inúmeras questões relacionadas ao cotidiano e ao lugar ocupado pelas mulheres naquela sociedade. As fontes trabalhadas também nos permitiram identificar que grande parte das missivistas presentes no arquivo de Deocélia Vianna advinham das camadas empobrecidas da população paulista. Esse aspecto se mostrou fundamental para a compreensão da dinâmica dialógica estabelecida entre os sujeitos envolvidos naquele produto cultural, conforme apontaremos na próxima seção.

Assuntos de mulheres: as queixas das ouvintes de Madame D’anjou

Temas relacionados a assuntos sentimentais aparentam certa superficialidade, uma “perfumaria” frente a objetos históricos tidos como mais relevantes. Entretanto, esses relatos impregnados de cotidianidade permitem que entremos em contato com a intimidade dessas mulheres, pois a trivialidade que marca suas narrativas não deve ser confundida com insignificância.

Se, por um lado, eles configuram a maioria das queixas apresentadas pelas ouvintes, há, de outro, uma série de nuances que evidenciam a existência de discursos ordenadores da prática social desses agentes. Apesar da solicitação veiculada pelo programa para que fossem enviados apenas “problemas íntimos, de ordem sentimental e moral perguntas pertinentes ao gênero do programa” (Madame D’anjou, 17/06/1952), Deocélia continuava a responder questionamentos alheios ao universo emocional.

Destacaremos, a seguir, algumas questões que foram abordadas por Deocélia Vianna em seu programa, algumas delas sob referências veladas, como a sexualidade, mas também o trabalho, os direitos das mulheres em relação ao casamento e aos filhos, o universo radiofônico e questões de saúde.

Sexualidade

As dúvidas envolvendo a sexualidade das missivistas de Madame D’Anjou permeavam diferentes tipos de relacionamentos: casamentos, namoros, amizades. Ainda que considerado um assunto de difícil abordagem na época, ele estava presente na vida dessas mulheres, independentemente de sua faixa etária. As interdições morais, no entanto, suscitavam muitos questionamentos, o que provavelmente encorajou a correspondência desse grupo de ouvintes com o consultório sentimental.

Como a ouvinte que se subscreve Duvidosa Odila (Rio Grande do Sul, s.d.), de 22 anos, perguntando se deveria fingir que era “digna” para seu atual namorado, que possui aprovação de toda sua família e que pretendia casar-se com ela. Ela se refere ao fato de ter engravidado do namorado anterior, que era viúvo e não contava com a simpatia de seus familiares. Na verdade, a expressão “digna” funciona como um eufemismo, já que termos mais explícitos referentes ao sexo não costumavam ser utilizados, nem pelas ouvintes, nem pela radialista. Não fica claro o desfecho dessa gravidez, mas determinadas passagens nos transmitem a ideia de que a jovem talvez tenha realizado ou sofrido um aborto. Ao fim da carta, confessa que ainda ama o ex-namorado, mas que não se casaria com ele porque a fez passar “os dias mais amargos da sua vida”.

A esse respeito, Deocélia Vianna responde atribuindo-lhe a responsabilidade por sua infelicidade, uma vez que permitiu que a vontade de sua família prevalecesse sobre os seus sentimentos. Aconselha-a a não se casar com o atual namorado, já que ainda gosta do outro. “Se de todo não deseja contrariar sua família, então conserve-se solteira. [...] Saiba lutar pela sua felicidade e [...] tenha juízo, minha amiga” (Madame D’anjou, 26/08/1952).

O conselho acima deixa claro que, segundo a radialista, a consulente deveria se posicionar de forma ativa nessa equação envolvendo seus sentimentos e sua família. Ao mesmo tempo que lhe recomenda juízo, o que pode ser entendido como uma contenção de seus impulsos sexuais, também a encoraja a assumir o protagonismo de suas escolhas.

De uma forma geral, existia uma expectativa social de que o relacionamento entre homens e mulheres atingissem diferentes níveis de compromisso, até a concretização do matrimônio. Namoro e noivado tinham a função de possibilitar que ambos se conhecessem melhor: “as normas e práticas que envolvem o jogo social do namoro são constantemente reproduzidas, ‘ensinadas’ e reforçadas” (Bassanezi, 1996BASSANEZI, Carla. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher 1945-1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996.:72-73). Por outro lado, já era possível escolher seus próprios cônjuges em meados do século XX. A família ainda interferia, certamente com mais energia no caso das mulheres, mas sua ação se restringia a avaliação nem sempre amistosa da personalidade dos pretendentes (Mello; Novais, 1998MELLO, João Manuel Cardoso; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: NOVAIS, Fernando A. (coord. geral); SCHWARTZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. v. 4. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.559-658.). Porém, na prática, percebemos como influenciavam a concretização do enlace amoroso.

Ainda que Deocélia não toque diretamente no assunto da gravidez em sua resposta para Duvidosa Odila, a informação contida em sua carta é de grande importância para a compreensão do contexto no qual esses problemas sentimentais se situam. A virgindade era considerada uma virtude que deveria ser preservada até o casamento, principalmente pelas mulheres. Tal condição fica mais evidente no caso da missivista Loira Aflita (São Paulo, 14/5/1952), que escreve contando que namorava um rapaz que lhe "fez mal". O namorado prometeu casamento, mas, na verdade, terminou o relacionamento. Agora a jovem está indecisa e busca aconselhamento se deve ou não contar para os pais o ocorrido.

Interessante notar que, embora camuflado por referências indiretas, existe no programa um espaço de diálogo sobre sexo. A própria utilização desses recursos evidencia como o tema era delicado. Mesmo que veladamente, Madame D’Anjou orientava suas ouvintes e esclarecia, segundo os paradigmas vigentes, dúvidas sobre sexualidade.

Assim, Deocélia lhe responde que sua situação é, realmente, desesperadora, pois foi muito imprudente e não agiu como uma moça “de bem”. Ela presume pela escrita que se trata de uma menor de idade – pois a ouvinte não menciona sua idade – e a encoraja a contar tudo para alguém da família, a fim de “ter um entendimento com o moço e esclarecer tudo imediatamente, antes que seja tarde demais” (Madame D’anjou, 23/05/1952). A locutora a incentiva a enfrentar a situação, mas deixa clara sua discordância para com o procedimento da moça. A sua reprovação deveria servir de alerta não apenas à missivista, mas para as outras ouvintes, para que não colocassem suas dignidades em risco.

Ainda sobre a virgindade, a consulente Mulher Sem Destino também encaminha uma missiva datilografada — algo raro no conjunto documental analisado —, em que expõe a sua delicada situação envolvendo um homem 18 anos mais velho por quem se apaixonara e que revelou ser desquitado somente após seis meses de namoro:

[...] procurei sempre desde então afastá-lo. Ele, porém, [...] armou um ardil contra mim, convidando-me para um passeio a Santos [...] convidou-me para ir ao apartamento de uma pessoa de sua relação [...]. Entramos então para esperar quem não existia e ele [...] ofereceu-me algo a tomar, algo que tomei e cujo conteúdo tinha sabor de álcool, foi só o que pude perceber, quando então acordei, já era dia seguinte, [...] senti algo diferente em mim, porém não sei o que se passou.

[...] Nunca mais quis vê-lo, tomei-lhe asco, pela ação desonrosa, e hoje após ter se passado tanto tempo, encontrei outro rapaz a quem amo, e que deseja ardentemente casar comigo.

Agora estou em dúvida quanto ao meu estado, não sei se devo ou não contar-lhe o que se passou, não sei, sinceramente em que situação me encontro, suplico pois a senhora para me orientar, e ao mesmo tempo me indicar um médico ou médica de seu conhecimento, a quem eu possa dirigir-me para um exame de corpo, em que eu possa ser tirada dessa terrível dúvida. Não quero recorrer a médico conhecido de minha família, porque esta não sabe o que se passa comigo. Assim, se porventura eu não esteja em condições de me casar, serei franca a ele (São Paulo, 20/05/1952).

O enredo é parecido com outras cartas: jovens que se envolvem com homens que revelavam ser desquitados somente depois de o relacionamento engrenar. Porém nem todos os casos culminavam no que foi relatado: um crime. O auxílio solicitado para Deocélia era, então, a indicação de um médico para atestar sua virgindade. A radialista emite seu parecer sobre o assunto:

[...] focalizando seu caso, aproveito para falar a tantas outras jovens que poderão um dia se encontrar na mesma situação que você. É a ideia do modernismo que assola a nossa época. É a noção completamente errada da emancipação feminina que a mulher aplica tão mal, e compreende tão mal. Quando ela tem a sorte de andar em companhia de um homem que a respeita, tudo ocorre sem novidades. Mas às vezes, aquele mesmo homem que ela julgava ser um cavalheiro revela os seus instintos mesquinhos e grosseiros (Madame D’anjou, 12/08/1952).

Deocélia utilizava um caso específico para se dirigir às jovens que acompanhavam Madame D’anjou, conferindo-lhe um caráter pedagógico. No entanto, ao responsabilizar uma determinada noção de emancipação feminina – da qual discordava – pelo que aconteceu com a missivista, atribuiu-lhe toda a culpa. De acordo com ela, a mulher deveria estar sempre atenta para que coisas similares não acontecessem. Porém, em nenhum momento há referência ao crime no roteiro.

Nesse espectro da sexualidade das mulheres, destacamos um tema pouco explorado pelas ouvintes e abordado com muito cuidado pela conselheira: a prostituição. O relato a seguir não foi dramatizado no programa, como era de costume, o que nos dá a dimensão da interdição do assunto. Atribuindo-se o pseudônimo de Flor da Noite (s.l, 15/08/1952), “mulher que não tem futuro por causa do triste passado”, a ouvinte pergunta à Madame D’anjou se deveria aceitar a proposta de um antigo namorado para lhe “tirar desta vida”. No entanto, tinha muitas dúvidas por não se sentir “digna”:

No programa, Deocélia Vianna não mencionou nenhum detalhe da carta. Incentiva que a ouvinte não perca a oportunidade de recuperar uma condição “digna”, de “reabilitar-se”: “Tudo depende de você. De sua força de vontade, do desejo de vencer. E, mais tarde, a satisfação de ter vencido, fará com que você se considere outra mulher. Aceite essa oportunidade e tenha confiança no futuro” (Madame D’anjou, 04/09/1952).

Em todo caso, a redatora encoraja as consulentes a assumirem um protagonismo em relação às suas escolhas e decisões. Essa é uma característica comum em seus conselhos. Observamos, do mesmo modo, a recorrência de termos como “dignidade”, “digna” (tanto nas cartas quanto nos roteiros) no sentido de uma distinção moral e sexual, levando-nos a considerá-los como parte de um ideário bastante difundido sobre o “bom comportamento” esperado das mulheres.

Essa mesma estratégia de responder a uma demanda considerada moralmente comprometedora sem apresentá-la previamente foi adotada para a carta da consulente de Santos (18/03/1952), que confessa estar apaixonada por sua amiga casada. Temendo cometer “uma loucura” – como matar o marido da amiga – perguntou ao programa o que deveria fazer.

Se, em meados do século XX, o sexo entre homens e mulheres casados já era um assunto interdito, o era muito mais em se tratando de duas mulheres. Com um tom bastante grave, Deocélia respondeu:

Moça de Santos, em sua carta datada do corrente, você narra um caso doloroso [...] e você conta seu caso que não pode ser radiofonizado. E o seu apelo no final da carta [...] é bem o grito de uma alma torturada, sintetizando toda a sua imensa tragédia. [...] A consciência é um juiz inflexível que nos aponta as nossas falhas, os nossos pecados, as nossas fraquezas, os nossos erros! [...] Você sabe que enveredou por um mau caminho [...]. No entanto, é necessário que você volte! [...] Você está à beira de um precipício, mais um passo e rolará por ele até o fundo, onde só há lodo, lama, que asfixia, que corrompe a alma mais pura. [...] Saia se puder dessa cidade [...] e volte só depois que estiver bem, segura de poder chegar até perto do abismo sem ser atraída por ele. Entretanto, aconselho-a também submeter-se ao tratamento de psicoterapia. Mas a verdadeira cura só você, pela força de vontade, pela fé e pela coragem, conseguirá obter! (Madame D’anjou, 09/09/1952).

As palavras empregadas (“caso doloroso”, “alma torturada”, “pecados”, “fraquezas” “erros”, “precipício”, “lodo”, “lama”, “abismo”) cumprem a função depreciativa para a paixão da ouvinte por sua amiga. Por fim, a conselheira menciona a necessidade de acompanhamento psicoterapêutico, comparando o amor de uma mulher por outra a uma doença que necessita ser curada.

O teor moral dos conselhos, dessa forma, alinhava-se diretamente aos preceitos vigentes, o que não chega a nos causar um estranhamento, visto que se tratava de um produto midiático, veiculado em horário vespertino e dedicado a um amplo público. Havia, por outro lado, muitos artifícios no tratamento dado ao assunto relacionados ao sexo, na tentativa de contemplá-los sem sofrer qualquer tipo de represália. Por essa razão, é importante destacar o reconhecimento de tal dimensão, na perspectiva de Deocélia Vianna, como constitutiva da vida e dos anseios de suas ouvintes.

Trabalho

A problemática do trabalho feminino aparece no programa como um conselho muito frequente nos roteiros de Madame D’anjou. Talvez por ter conhecimento do perfil socioeconômico de suas ouvintes e devido às suas convicções pessoais, Deocélia Vianna recomendava o trabalho remunerado como solução para os problemas conjugais de diversas cartas. Mesmo que isso causasse certo estranhamento em algumas pessoas de seu meio profissional: “em tom de piada diziam que as respostas da maioria das conselheiras mandavam a ouvinte rezar e eu mandava trabalhar...” (Vianna, 1984:116).

Ela mesma começou a trabalhar desde a adolescência para ajudar a mãe em vários empregos, como balconista, recepcionista, datilógrafa. Também integrava a Federação de Mulheres do Estado de São Paulo (FMESP), entidade civil fundada em 1948 que “congregava várias tendências da esquerda brasileira sob influência do Partido Comunista Brasileiro” (Morente, 2015MORENTE, Marcela Cristina de Oliveira. Invadindo o mundo público. Movimentos de mulheres (1945-1964). Dissertação (Mestrado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. DOI:10.11606/D.8.2015.tde-09102015-132717.
https://doi.org/10.11606/D.8.2015.tde-09...
:29).

A Federação congregava mulheres operárias ou simples donas-de-casa, e havia núcleos em vários bairros de São Paulo. A luta era pelo direito da mulher, salário igual, creches nos locais de trabalho, aposentadorias etc, além da luta pela PAZ, pelas liberdades democráticas (Vianna, 1984:88).

Em 1951, a FMESP já havia sofrido um fechamento pela Polícia de São Paulo, sob alegação de exercício de atividades antinacionais, devido às supostas ligações de suas integrantes com o comunismo (Morente, 2015MORENTE, Marcela Cristina de Oliveira. Invadindo o mundo público. Movimentos de mulheres (1945-1964). Dissertação (Mestrado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. DOI:10.11606/D.8.2015.tde-09102015-132717.
https://doi.org/10.11606/D.8.2015.tde-09...
). Não por acaso, quando convidada a assumir a direção da programação feminina da Rádio Difusora, Deocélia foi questionada pelo patrocinador do programa, Valery Perfumes, sobre sua atuação política. Tinha receio de que a redatora pudesse veicular ideias consideradas “subversivas” e assim prejudicasse a audiência ou comprometesse a atração junto aos órgãos de censura.

Deocélia respondeu indignada: “– Não tenho nada a lhe dizer, a não ser que ninguém me pediu atestado de ideologia” (Vianna, 1984:115). Mesmo sob vigilância e sob o estigma de “comunista”, Vianna comunicou suas convicções sobre o papel social do trabalho e da mulher. Em alguns momentos para ajudar o orçamento doméstico e uma forma de distração, como recomendou à Fracassada da Capital. Em outros, como meio de obtenção de autonomia. À Mulher Sofredora (São Paulo, 21/05/1952), viúva abandonada pelo então companheiro, vivendo em sérias restrições financeiras, Deocélia deu a seguinte recomendação: “Procure viver exclusivamente para seus filhos, arranjar qualquer colocação para sustentá-los, que você poderá fazer em casa, ao lado dos mesmos” (Madame D’anjou, 06/06/1952).

Se, por um lado, houve um crescimento da participação feminina no mercado de trabalho na década de 1950, por outro, essa tendência se contrapunha ao papel idealizado que foi então atribuído à mulher, prioritariamente relacionado aos cuidados da casa, dos filhos e do marido (Bassanezzi, 2008). Essa vigilância rígida também se estendeu às mulheres da classe trabalhadora, para quem o trabalho sempre foi uma questão de sobrevivência.

A norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua. Longe de retratar a realidade, tratava-se de um estereótipo calcado nos valores da elite colonial, e muitas vezes espelhados nos relatos de viajantes europeus, que servia como instrumento ideológico para marcar a distinção entre as burguesas e as pobres. Basta aproximar-se da realidade de outrora para constatar que as mulheres pobres sempre trabalharam fora de casa. Com a industrialização, chegaram, junto com as crianças, a compor mais da metade da força de trabalho em certas indústrias, notadamente nas de tecido (Fonseca, 2008:517).

Os debates em torno da educação vocacional das mulheres, a partir da década de 1920, e da educação trabalhista em São Paulo, a partir dos anos 1930 também enfatizaram a vocação doméstica da mulher. Assim, a trajetória profissional das mulheres era considerada provisória, até que transferisse sua força produtiva para sua real vocação: cuidar da organização e da higiene do lar, da saúde e da nutrição das crianças e manter o matrimônio sadio (Weinstein, 1995WEINSTEIN, Barbara. As mulheres trabalhadoras em São Paulo: de operárias não qualificadas a esposas profissionais. cadernos pagu (4), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.143-171.). Submersas nesse complexo mosaico de redefinições do trabalho da mulher, ouvintes e radialista expressam bem essas tensões.

Vianna incentivava as mulheres a trabalhar, ainda que dentro de casa, perto dos filhos. À ouvinte Esposa Infeliz do Jabaquara (São Paulo, 25/03/1952), que relata problemas financeiros devido à conduta do marido e que, por isso, precisa deixar os filhos sozinhos em casa para lavar roupa, ela recomenda que procure por um trabalho para ajudar no orçamento da família. Mas ressalta que as crianças precisam de cuidados e que o ideal é que trabalhe em casa, junto a eles (Madame D’anjou, 08/04/1952).

De fato, seu posicionamento não nos permite entrever uma proposta de ruptura das normas então vigentes, calcadas, sobretudo, na definição sexista de papeis sociais para homens e mulheres. Entretanto, levando-se em consideração a amplitude do alcance do rádio enquanto mídia de massa e a notoriedade de sua trajetória política, a abordagem da roteirista para a solução de conflitos familiares – salientando a importância da consulente exercer uma atividade remunerada – é indicativa da vulnerabilidade a que estavam sujeitas essas mulheres, subjugadas social e economicamente.

Direitos

Há ainda um conjunto interessante de solicitações e de conselhos que se destacam, pois envolvem algum tipo de esclarecimento de natureza jurídica, prioritariamente sobre matrimônio, desquite e guarda dos filhos. Todos esses assuntos são resultantes de disputas e de desentendimentos entre casais.

Não é possível ignorar que a própria trajetória de Deocélia se relacionava com o tema e que isso muito provavelmente influenciou a suas respostas às ouvintes de Madame D’anjou. Seus pais, Sylvia e Raul, não representavam um casal convencional, segundo os ditames comportamentais e morais da década de 1910. Sua mãe pertencia a uma tradicional família da região de Curitiba, os Requião, enquanto seu pai, além da fama de boêmio, tinha origens mais modestas. Após a curta união, Sylvia voltou com a filha para a casa dos pais.

Meu pai não se conformava com a situação e várias vezes tentou me ver. Minha mãe me apavorava dizendo que ele queria me roubar. Começava então a luta pela pobre Deocélia. Desquite? De que jeito, naquela época? E eu, com quem ficaria, caso a justiça entrasse no meio? Mamãe, para fugir àquela situação, veio de mala e cuia para São Paulo carregando comigo (Vianna, 1984:11).

Chegaram em São Paulo em 1921, como forma de contornar todo o embaraço que a situação impingia a elas, principalmente à sua mãe: “No fundo ela não tinha culpa. E de quem seria culpa? Do meu avô (...), da sociedade feudal, dos preconceitos onde a mulher levava sempre a pior?” (Vianna, 1984:16) Toda essa referência emocional certamente foi acionada ao ter que dar conselhos para casos como o da Esposa Triste da Capital:

Sou casada há dois anos só na Igreja. Insisto em casar no civil, mas ele não quer. Temos uma filhinha de 3 meses. Meu marido e minha sogra me batem muito, estou cansada de tanto sofrer [...]. Minha família não sabe o que se passa em casa. [...]

Ajude-me Madame Danjou, me aconselhe o que devo fazer, 2 anos apanhando todos os dias não há corpo que resista. Devo dar parte ou contar a meu pai? A menina é registrada nos nossos nomes. Será que tenho direito na minha filha? Sou honesta graças a Deus (São Paulo, 09/1952).

Desde a promulgação da primeira Constituição republicana, em 1891, que o controle da vida civil foi transferido da Igreja para o Estado, uma vez que até esse momento era ela quem controlava os registros de nascimento, casamento e morte. A partir de então, o matrimônio religioso não era mais válido como um registro civil, sendo necessária a realização do contrato nupcial segundo os preceitos constitucionais. Em 1916, começou a vigorar o Código Civil, o qual lançou as bases do casamento e dos papéis de cada cônjuge na relação. Todavia, muitas mulheres, assim como Esposa Triste, desconheciam as diferenças entre os casamentos religioso e civil.

Coube à radialista o esclarecimento a respeito da validade jurídica do casamento religioso. Sobre os direitos custodiais da criança, elucida para a ouvinte que, justamente por não ser casada formalmente, o “seu marido não pode pleitear, exigir a criança pois não possui o pátrio poder” (Madame D’anjou, 23/09/1952). Este era um direito adquirido do homem perante o Código Civil: a ele cabia a representação legal da família, esposa e filhos. Nesse caso, a ausência da prerrogativa jurídica suspenderia, a princípio, qualquer reivindicação do pai sobre a criança.

Deocélia não deixa de recomendar à sua ouvinte um pouco mais de reflexão antes de renunciar ao lar, sempre o último recurso, mesmo em casos de violência doméstica como este. Aconselha-a que consulte os pais, que se mude da casa da sogra, que converse com o marido:

É claro, é natural que você não queira ser caixão de pancadas e leve uma vida tão amargurada. Mas para tudo há remédio. Desde que você saiba escolher o remédio certo, tudo há de se resolver. Fale com seus pais, com seu marido, reflita bastante e veja se há possibilidade de salvar o seu lar para o seu próprio bem e de sua filhinha (Madame D’anjou, 23/09/1952).

Já a situação da missivista Desesperada de Franco da Rocha (Franco da Rocha, 04/07/1952), é diferente. Formalmente casada e enfrentando dificuldades em seu relacionamento, ela pensa em ir embora, ao que Madame Danjou a adverte:

Só o fato de abandonar o marido, abandonar sua casa, dará ensejo dele impor os direitos que tem sobre a filha, no caso de tentar separação legal, isto é, o desquite. Perante a lei, é sempre culpado aquele que abandona o lar, está compreendendo? [...] Mude pois sua maneira de ser e agir e tente mais um pouco. É muito cedo para você julgar que sua vida, ao lado de seu marido, não tem solução nem conserto (Madame D’anjou, 22/07/1952).

Esposa Triste da Capital e Desesperada de Franco da Rocha compartilham situações muito similares. Aparentam ser mulheres jovens, casadas há pouco tempo e com filhos ainda pequenos. Já as missivistas a seguir são casadas há vários anos, com filhos adultos, e que se encontram em sérios apuros conjugais. A ouvinte Infelicíssima (São Paulo, 05/03/1952), casada há 25 anos, descobriu que o marido tinha uma amante. Diante do comportamento tumultuado, um dos filhos do casal confrontou o pai, que afirmou que apenas concederia o desquite caso a esposa se mudasse para outro bairro. E a esse respeito Madame Danjou a alerta:

Quanto ao fato de seu marido querer que você saia de casa, não faça isso em hipótese alguma. Agora temos que ver o aspecto jurídico da questão, isso é, os direitos de cada um, perante a lei. O marido livra-se de qualquer responsabilidade no caso de a mulher abandonar o lar. Ela não terá direito a nada! No caso de desquite, sendo o marido quem faltou aos seus deveres, ele fica obrigado a sustentar, a manter a mulher. Portanto, minha amiga, se chegar a esse ponto, procure um advogado para defender seus direitos. E não se mude, não saia de sua casa de maneira alguma, para que seu marido não possa acusá-la depois de ter abandonado o lar (Madame D’anjou, 13/03/1952).

O desquite, como fora incluído no Código Civil, não liberava homens e mulheres do vínculo conjugal, mas estas restauravam sua autonomia. No tocante aos filhos, no entanto, a guarda geralmente era da mãe, mas poderia ser requerida pelo pai caso o comportamento da mulher fosse considerado “inadequado”. Dessa forma, eram muitos os artifícios que poderiam ser utilizados para manipular as circunstâncias ou para produzir distorções em benefício do homem desquitado que desejasse se desobrigar do sustento da esposa e requerer a guarda dos filhos para si.

A ouvinte Stelamarga (São Paulo, 07/03/1952), também casada há mais de 20 anos expõe seus problemas:

Começo a lhe dizer que meu marido nunca me deu felicidade e nem mesmo um lar, pois há mais de 20 anos que espero por este morando sempre na casa de parentes, lutando com dificuldade para educar nossa única filha. [...]. Nem a filha que está noiva ele quer auxiliar, esse é o meu maior sentimento, pois agora que tanta falta faz a presença de um pai, mesmo ruim como ele é. [...] Eu queria saber se com o auxílio da lei conseguia dele alguma coisa, ao menos agora que estou tão necessitada [...]. Consultei um advogado e este me deixou na mais completa desilusão. Disse que o marido pode maltratar a família como bem entender, com palavras, gritos, escândalos, como o meu costuma fazer pondo o pessoal da casa em sobressaltos todos os dias, pois costuma dormir embriagado e o palavreado que diz é do mais baixo calão, sem que a lei possa intervir, pois ele é o senhor absoluto daquelas criaturas. Até me disse que não tenho direito de exigir nada, ele se quiser dá alguma coisa, mas ninguém obriga, ainda mais quando a filha é maior. [...] quero uma resposta sua se de fato isso é assim mesmo ou se devo procurar outros meios ou mesmo de calar-me. Se esta é a lei do Brasil, paciência não posso lutar com a justiça dos homens. A de Deus há de vir um dia, não acha a senhora? [...]. Só para nós Madame Danjou: eu gostaria que viesse o divórcio para certos casos.

Fica evidente a falta de informação a que esta mulher estava sujeita. Nem mesmo quando procurou um advogado obteve os esclarecimentos que necessitava, escancarando-nos as diversas camadas de desamparo e de marginalização com que as mulheres de extratos sociais menos favorecidos tinham que lidar. Deocélia Vianna manifestou-se solidariamente à ouvinte, demonstrando empenho para respondê-la:

Para responder a sua carta, minha amiga, eu também consultei um advogado e um juiz. A lei garante os seus direitos, minha amiga. Seu marido tem obrigação de mantê-la. E você pode recorrer à justiça, caso ele recuse a ajudá-la. No Tribunal de Justiça, na praça Clóvis Bevilácqua há juiz da família que se ocupa desses casos. Procure, pois, no Fórum, um juiz de família e exponha-lhe o seu caso. Lute pelos seus direitos. Quanto ao tópico de sua carta, que deve ficar apenas entre nós, estou de pleno acordo com você. E tenho certeza de que mais cedo ou mais tarde, isso se tornará uma realidade (Madame D’anjou, 13/03/1952).

Mesmo sem conhecer os pormenores do desquite, Stelamarga soube distingui-lo do divórcio, sobre o qual confidencia com Deocélia: poderia ser empregado para casos como o dela, em que o marido abandona a família. O desquite, por ser considerado tema inapropriado, praticamente não era conhecido em seus aspectos jurídicos pela maioria das mulheres. Era mais um inimigo a ser combatido do que um instrumento legal. De fato, suas consequências negativas para a reputação de homens e mulheres eram incontestáveis.

Apesar de tão estigmatizado, ele representava um último recurso para algumas esposas e, nesse momento, a ignorância poderia representar uma vantagem para maridos que desejassem retirar-lhes a guarda dos filhos ou isentar-se do pagamento de pensão. Com o cuidado de não mencionar a que se referia, Deocélia, ao fim de seu conselho, expressa sua concordância com o pensamento da ouvinte, ou seja, pela formalização do divórcio no país, sem, no entanto, fazer referência direta ao assunto. O divórcio entrou em vigor no Brasil apenas em 1977.

Havia, dessa forma, uma maior empatia em seus conselhos de caráter jurídico quando direcionados a mulheres mais velhas e, possivelmente, em uma situação de maior dependência econômica dos maridos. Para as mais jovens, recomendava que insistissem nos relacionamentos. No entanto, em ambos os casos, transparece a função de orientação jurídica assumida pelo programa, a qual transbordava o seu propósito inicial de consultório sentimental. Porém, naquele contexto de pouco – ou mesmo de nenhum – reconhecimento dos direitos das mulheres mais empobrecidas, Madame D’anjou representou uma estratégica e inusitada fonte de informações.

Rádio

Nos anos 1950, o rádio contava com uma estrutura profissional e com um público cativo. Foi porta-voz de notícias da guerra, das inovações tecnológicas, das músicas de sucesso, dos artistas da moda. Estabeleceu com as pessoas um relacionamento cotidiano, com hora marcada. Sua programação diversificada oferecia opções que iam do compromisso diário das radionovelas à distração dos radioteatros, à animação dos programas de auditório, à informação do radiojornalismo e à emoção dos programas esportivos. Esse vínculo também se faz presente dentre os principais assuntos levados pelas ouvintes de Madame D’anjou.

Algumas missivas serviam como instrumento para expressão do imaginário novelesco que era estimulado pela programação radiofônica. A própria Deocélia identificava a dramaticidade de algumas cartas. A ouvinte Moça Triste (São Paulo, 21/05/1952), de 25 anos, remeteu uma missiva extensa, na qual relata toda a sua história de vida, desde quando seus pais se separaram 14 anos antes, sua passagem por um reformatório, a gravidez aos 19 anos e a internação no Instituto Paulista com as loucas, as humilhações, a doação da filha para um casal rico. Elementos dramáticos que cairiam muito bem em uma radionovela, como bem observou a radialista:

Da sua carta de dez páginas extraí os trechos mais importantes, pois se fosse apresentar tudo, teríamos que fazer capítulos, como nas novelas. E no seu caso, permita que lhe diga, tenho a impressão que entrou muita fantasia, bastante imaginação (Madame D’anjou, 10/06/1952).

São várias missivas com pedidos de emprego, de apreciação de textos, de dicas para iniciar uma carreira no rádio, como, por exemplo, o Radialista Sem Futuro (Uberaba, 29/04/1952), um rapaz de 17 anos que sonha em ser radionovelista ou radioator, contra a vontade dos pais. Ele pergunta se deveria fugir para São Paulo ou esperar se formar para seguir a profissão que almeja. Deocélia é bem incisiva em seu conselho:

Baseando-me pela sua carta devo dizer-lhe que você está ainda bem fraquinho. Não é a carta de um escritor. [...] Tenho a impressão de que você não é muito estudioso, pois com 17 anos está ainda na 4a série ginasial. Portanto a conclusão é esta, você nunca será um escritor se não estudar e estudar bastante para possuir um cabedal de cultura que irá ajudá-lo depois. (...) Você precisa estudar e viver um pouco mais (Madame D’anjou, 08/05/1952).

Para a redatora, trabalhar no rádio requeria estudo e dedicação. No entanto, o fascínio da presença cotidiana da programação radiofônica era tanto que nem sempre ficava evidente para o público toda a engrenagem que estava por trás do seu funcionamento. Cintilavam apenas o glamour e a fama dos artistas, levando muitos ouvintes a almejar esse status. Como a missivista Maria Regina (São Paulo, 25/04/1952), de 16 anos, que sonhava ser radioatriz e, tamanho era seu desespero, que pensou até mesmo em tomar um copo de formicida. Por isso pedia a Deocélia Vianna uma oportunidade de trabalho, que lhe responde da seguinte maneira:

Minha amiguinha, parece que você tem jeito é para escrever dramas, desses que fazem chorar... Que você sonhe ser radioatriz eu admito; [...] mas... que pretenda desertar da vida, que fale em veneno, suicídio, morte... nisso há muito exagero. Em primeiro lugar devo dizer-lhe que o quadro de radioatrizes das Associadas está completo. Não há vaga. No entanto, se você tiver talento, como afirma em sua carta, a história muda de figura e você terá a sua oportunidade. Mas, antes de mais nada, será necessário fazer um teste com os diretores de radioteatro. Com meu marido, com o Oduvaldo, na Difusora; ou com o J. Silvestre, na Tupi. [...] Não pense você que no rádio se trabalha menos. Ao contrário, entre ensaios e audições os artistas têm seu tempo tomado desde manhã até dez ou onze horas da noite. São horários intercalados, mas que tomam o dia e parte da noite das radioatrizes, que, pelo seu trabalho e dedicação ao rádio, merecem respeito e admiração (Madame D’anjou, 13/05/1952).

Tal qual procedera em relação ao ouvinte Novelista Sem Futuro, Deocélia se investe de sua autoridade profissional no tema em questão para aconselhar a ouvinte. No entanto, aqui ela se praticamente se despe da personagem, pois se refere diretamente ao marido. Oduvaldo Vianna foi um dos principais responsáveis pela profissionalização do radioteatro e da radionovela. Quando Deocélia menciona todo o esforço empreendido pelos profissionais na área, ela destaca um dos principais fundamentos para a boa qualidade desses programas defendidos por Oduvaldo:

O ensaio, para o artista do rádio, é como o exercício para quem se dedica ao piano. Com ele, os radialistas conseguem dar os matizes precisos, acertando inflexões, colocando a música de fundo com justeza e todo o colorido que exige uma audição. Um radioator estuda, também, o seu papel, lendo-o várias vezes e marcando-o com flechas, para que não falseiem as intenções, no momento exato (Vianna, 2007VIANNA, Oduvaldo. O rádio e sua técnica. In: VIANA, Oduvaldo. Herança do ódio. Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa, 2007.:76).

No entanto, o que prevalecia para o público ouvinte em geral era o caráter encantador do rádio. O pedido da Tia Desesperada de Santo André (Santo André, 15/09/1952) reflete sobre essa relação entre público e os artistas do rádio. Sua sobrinha frequentava os estúdios da Rádio Difusora há alguns anos e desenvolveu uma amizade com um locutor por quem se apaixonara. Entretanto, disseram-lhe que era casado. Como ele trabalhava na mesma emissora que Madame Danjou, a Tia Desesperada pede a ela que descubra se esse locutor é realmente casado e dar a resposta pelo microfone, para desiludir a sobrinha.

A conselheira aceitou investigar a vida do colega de emissora. Constatou que o locutor era solteiro, mas recomendou que a moça se certificasse de que havia um entendimento efetivo entre eles (Madame D’anjou, 17/10/1952). Locutores e radioatores eram muito assediados por fãs e qualquer aceno de simpatia de sua parte era interpretado pelas admiradoras como amor correspondido. Amores platônicos ou até mesmo namoricos furtivos com fãs eram comuns, o que reforçava ainda mais a aura de encantamento que o rádio exercia sobre seu público. Muitos desejavam fazer parte dele. Não apenas na condição passiva de ouvinte, mas sim participando ativamente naquela máquina sonora de sonhos.

Saúde

Embora em menor quantidade, trazemos, por fim, alguns exemplos de dúvidas relacionadas à saúde das ouvintes ou de familiares. Instigou-nos que um programa de consultório sentimental pudesse ser encarado por essas mulheres como um canal de obtenção de informações dessa natureza. Os poucos casos encontrados são diferentes entre si, bem como o perfil das consulentes.

Uma moça de 17 anos que assina como Esposa Triste (Caçapava, 02/06/1952), casada há seis meses, escreve para o programa muito aflita, pois uma parteira indicara que estava grávida de quatro meses. Três meses após, a mesma parteira dissera que havia se enganado. Agora pergunta ao programa se deve procurar um médico ou não, pois sente “indícios de gravidez”.

Deocélia tranquiliza a ouvinte e diz que é muito jovem para se preocupar, que em breve terá muitos “pimpolhos”. Recomenda-lhe que deve procurar um médico para fazer o exame que diagnostica gravidez (Madame D’anjou, 17/06/1952). De fato, a juventude e a interdição de temas associados à sexualidade, como a reprodução, contribuem para a total insegurança da ouvinte em exercer os papeis que deveria assumir a partir do casamento, conforme os ditames da época: ser esposa e mãe.

Outra consulente é Elena (São Paulo, 25/06/1952), que sofre de varizes e pergunta o que deve fazer. Madame Danjou recomenda que procure um médico o mais rápido possível, pois se não forem atacadas logo no início, fica mais difícil de curá-las (Madame D’anjou, 08/07/1952). Já a missivista Paranaense Desgostosa (Jaboti, 24/7/1952) relata a sua preocupação com o comportamento do marido, que bebe demais. O conselho de Deocélia foi fundamental para identificarmos o tema dessa missiva. No seu entendimento, o problema seria o alcoolismo do cônjuge, o qual deveria ser tratado:

seu caso só poderá ser solucionado se seu marido concordar com um tratamento médico. O vício da [...] pode ser curado, desde que a pessoa que se entregou a ele coopere, submetendo-se ao tratamento adequado. [...] Após o tratamento, seu marido voltará a ser o bom pai, bom esposo, bom chefe de família que era antes de adquirir esse triste vício (Madame D’anjou, 24/08/1952).

Como assinalamos, são poucos os casos com queixas de saúde reportados pelas ouvintes, mas nem por isso são menos reveladores. Indicam-nos, quando interpretados em conjunto com as outras temáticas abordadas nas cartas, que o público de Madame D’anjou – quase totalmente formado por mulheres – estava sujeito a uma extensa gama de precariedades. Praticamente todas eram marcadas pelo signo da desinformação. Assim, o programa supria essa lacuna e provia conselhos e escuta para problemas considerados sem importância, justamente por serem queixas de mulheres.

Considerações finais

Geralmente, as mulheres estão ausentes nas instituições de memórias ou relegadas à uma zona de invisibilidade por não terem alcançado “notoriedade” nas áreas de atuação socialmente reconhecidas como relevantes. Quando se fazem presentes, muitas vezes são consideradas “acessórias” da trajetória de parentes homens. Ambos os casos resultam naquilo que Michelle Perrot (1989)PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, v. 9, n. 18, São Paulo, ago./set. 1989, pp.09-18 denominou de “o silêncio dos arquivos”: a ausência de fontes para a escrita de uma história que contemple a experiência das mulheres. Por essa razão, é necessário ampliar o conhecimento a respeito de fontes que tratam sobre essa questão e que, ainda por cima, integram o conjunto documental produzido por uma mulher.

As cartas das ouvintes de Madame D’anjou, preservadas no arquivo pessoal de Deocélia Vianna, colocam-nos em contato com o registro de impressões sobre a realidade de diferentes tipos de mulheres, oriundas de estratos sociais e de faixa etária diversos. No entanto, verificamos, por meio da análise do conteúdo e da materialidade das missivas, que predominam mulheres jovens pertencentes às camadas populares da sociedade paulista do período.

Os roteiros do programa redigidos pela roteirista também nos permitem entrever aspectos relacionados com a sua visão de mundo diante das queixas apresentadas pelas consulentes. Ainda que inserida e operando segundo os códigos morais de conduta daquela época, seus conselhos nos permitem vislumbrar as tensões entre suas trajetórias de vida e perspectiva pessoal sobre a existência feminina e aquele contexto sociocultural específico, no qual à mulher cabiam, sobretudo, o recato como diretriz comportamental e o ambiente doméstico enquanto destino.

Outro aspecto relevante relacionado com a dinâmica da produção de Madame D’anjou consiste na diversidade dos assuntos presentes nas cartas e a complexa relação estabelecida entre as ouvintes e Deocélia Vianna. Apesar dos avisos transmitidos durante o programa para que apenas questões emocionais fossem enviadas, não havia como impedir efetivamente o encaminhamento de dúvidas que não contemplavam o perfil da atração radiofônica, que se dedicava, originalmente, a solucionar problemas íntimos.

Todavia, o programa, por meio de Deocélia Vianna, acolhia e aconselhava tais solicitações, nem que fosse para recriminar algum comportamento para a própria consulente ou para usá-lo como exemplo negativo para todas as ouvintes. Madame D’anjou contribuiu, assim como as revistas femininas tão difundidas a partir do início do século XX, para reafirmar certos valores e rituais que visavam modular o comportamento do público feminino. Porém, observamos de igual modo que existiam diferentes nuances entre preceitos comportamentais “ideais” e a realidade. Em nosso entendimento, tal evidência se deve à trajetória de Deocélia somada à amplitude do produto. A radiodifusão transpunha os limites da alfabetização, pouco comum entre a maioria daquelas mulheres, atingindo um público que manifestava profundas carências informacionais e que demonstrava estar submetido a grande controle econômico e à forte vigilância moral por parte da ordem vigente. Desse modo, o rádio pode ser considerado uma ferramenta social estratégica, que foi capaz de prover – por meio de Madame D’anjou – tanto entretenimento quanto serviços que não estavam facilmente disponíveis para suas ouvintes.

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  • VIANNA, Oduvaldo. O rádio e sua técnica. In: VIANA, Oduvaldo. Herança do ódio. Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa, 2007.

Fontes

  • Roteiros radiofônicos de Madame D’anjou (CEDOC/Funarte. Arquivo Deocélia Vianna. Série FV-DV1, subsérie 1.4.1. Parte I): 13/03/1952; 08/04/1952; 08/05/1952; 13/05/1952; 23/05/1952; 06/06/1952; 10/06/1952; 17/06/1952; 08/07/195; 22/07/1952; 12/08/1952; 24/08/1952; 26/08/1952; 04/09/1952; 09/09/1952; 23/09/1952; 17/10/1952.
  • Cartas de ouvintes de Madame D’anjou (CEDOC/Funarte. Arquivo Deocélia Vianna. Série FV-DV1, subsérie 1.4.1. Parte III.):
  • Desesperada de Franco da Rocha. Franco da Rocha, 04/07/1952.
  • Duvidosa Odila. Rio Grande do Sul, s.d.
  • Elena. São Paulo, 25/06/1952.
  • Esposa Infeliz do Jabaquara. São Paulo, 25/03/1952.
  • Esposa Triste. Caçapava, 02/06/1952.
  • Esposa Triste da Capital. [São Paulo], 09/1952.
  • Flor da Noite. s.l, 15/08/1952.
  • Fracassada da Capital. São Paulo, 19/02/1952.
  • Infelicíssima. São Paulo, 05/03/1952.
  • Loira Aflita. São Paulo, 14/5/1952.
  • Loirinha Triste da Capital. São Paulo, 23/04/1952.
  • Maria Regina. São Paulo, 25/04/1952.
  • Moça de Santos. Santos, 18/03/1952.
  • Moça Triste. São Paulo, 21/05/1952.
  • Mulher Sem Destino. São Paulo, 20/05/1952.
  • Mulher Sofredora. São Paulo, 21/05/1952.
  • Paranaense Desgostosa. Jaboti, 24/7/1952.
  • Radialista Sem Futuro. Uberaba, 29/04/1952.
  • Stelamarga da Capital. São Paulo, 07/03/1952.
  • Tia Desesperada de Santo André. Santo André, 15/09/1952.

Periódicos (Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional):

  • Diário da Noite São Paulo, 18/03/1952, p.2.
  • Diário da Noite São Paulo, 05/03/1952, p.12.
  • Radiolar “Oduvaldo Vianna, o famoso novelista brasileiro”. n. 13. São Paulo, 1951. pp.18-20.
  • RODRIGUES, Airton. Diário da noite São Paulo, 03/04/1952. Rádio e TV. p.21.
  • 1
    Quando nasceu, foi registrada como Deuscélia por seus pais. A alteração para forma utilizada aqui neste trabalho somente se deu no final da década de 1960, como pudemos constatar por meio da consulta à documentação reunida em seu arquivo.
  • 2
    Oduvaldo Vianna (1892-1972) foi um dos principais dramaturgos do teatro brasileiro nas décadas de 1920 e 1930. Ao longo de seus 50 anos de carreira, também atuou como roteirista e diretor de cinema e desempenhou papel fundamental na profissionalização do rádio no país. Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) foi ator e dramaturgo. Escreveu para o teatro e para a televisão obras como a peça Rasga Coração e os roteiros do programa A Grande Família.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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