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Diálogo em um ato sobre “Por acaso eu não sou uma mulher?” Interseccionalidade em Luedji Luna e a cena musical de Salvador

Bernardo e Rafael: Entre os desafios mais frequentes de se escrever a quatro mãos, o ato de compatibilizar ideias e perspectivas distintas em um mesmo texto, sob o risco de expor as vulnerabilidades (e vaidades) inerentes a qualquer trajetória intelectual, costuma desencorajar a prática entre pessoas da academia. Diante da falta de tempo e do pulso acelerado do produtivismo científico, o desejo de preservar a voz autoral de possíveis ruídos surgidos no trabalho coletivo parece se sobrepor à criação de registros dialógicos na produção de conhecimento. Que dirá um comentário crítico baseado em pareceres elaborados individualmente sobre um artigo cuja autoria nos é vedada de antemão. Como escrevê-lo? Que contribuição é possível oferecer, que já não tenha sido apresentada nos pareceres? Ao aceitarmos o convite da cadernos pagu para a seção Bastidores da produção do conhecimento feminista, meditamos não apenas sobre o desafio de refazer juntos um percurso trilhado em separado, mas sobre a forma que tal comentário assumiria. Isso porque não queríamos que nossa reflexão se furtasse a expressar o encontro do qual surgiu. Assim, instigados pelo uso da palavra “bastidores” para nomear a nova seção da cadernos, encontramos no formato cênico a solução textual entre nossas vozes individualizadas e uma voz coletiva. Um “coro”, no jargão teatral. A partir dele, experimentamos novas estratégias de intervenção e, assim como Nadja Vladi Gumes, Marcelo Garson e Marcelo Argôlo, tentamos situar nossas próprias palavras em experiências pregressas, além de explicitar o caráter dialógico de quem aprende com e pelas palavras dos outros.

Bernardo: Antes de avançar no texto rico sobre Luedji Luna, acho prudente tecer algumas reflexões sobre o estatuto de um parecer. Com a proposta estimulante do cadernos pagu abre-se uma caixa-preta acadêmica, justamente o teor de um texto anônimo sobre um artigo encaminhado para uma revista acadêmica – suas potencialidades, limites, desafios e armadilhas. Embora seja um trabalho duro, não remunerado e complexo, gosto de conhecer o que as pessoas produzem. Na primeira leitura, a pergunta motivadora da pesquisa me interessa e, a partir dela, pretendo identificar como os autores desenvolveram sua metodologia, seus referenciais e suas ideias. Gosto de entender como a bibliografia foi acionada (ou não) e em que direção o artigo promete contribuir. Numa segunda leitura, com o texto já decantado, verifico se o argumento segue uma espécie de “dramaturgia” – um caminho discursivo (ainda que fragmentado) para conduzir quem lê – e atino para detalhes argumentativos. Certamente, os limites do parecerista são muitos: nem sempre somos absolutamente especialistas na área (ainda mais quando o objeto é novo ou a abordagem inédita); e, por vezes, discordamos dos pressupostos metodológicos e/ou teóricos de quem escreve. Nessas ocasiões, vale a pergunta: a discordância será usada como uma forma de disputa de campo do saber ou é possível avaliar a qualidade do trabalho reconhecendo a existência de outros pontos de partida? O momento da avaliação, justamente pelo anonimato, pode ser sedutor para a defesa das próprias ideias e, com isso, contribuir para minar o trabalho de alguém (ou de alguéns) via reprovação. Essa oportunidade dos “Bastidores” me faz pensar sobre um campo interessante de investigação, isto é, examinar as dinâmicas dos pareceres na história das ciências sociais no Brasil. Tal pesquisa pode ajudar a compreender como determinados temas e abordagens “vingam” e se fortalecem (por receberem pareceres de afinidade) e outras são podadas e não amadurecem (por pareceres refratários). Mas essa é apenas uma deriva compartilhada com a comunidade. Passemos para o texto em si.

Rafael: Interesso-me pela relação entre produção musical e produção de diferenças desde a pós-graduação. Considerar a dupla dimensão das decisões estéticas e políticas de artistas no processo de constituição de sua obra e de suas personas (a definição do repertório, a montagem das sonoridades, as parcerias feitas e recusadas, o uso do corpo, etc.) e do terreno, mais ou menos acidentado, de constrangimentos enfrentado por eles/elas em virtude de sua origem e marcas sociais, isto é, das situações e conjunturas impostas para além de sua escolha, parece-me um caminho privilegiado para flagrar os reprocessamentos da experiência social em uma linguagem expressiva regida por convenções determinadas. Por isso, receber o artigo “Por acaso eu não sou uma mulher?” foi uma grata e dupla surpresa. Em primeiro lugar, por me permitir conhecer Luedji Luna mais a fundo, cantora e compositora cujo trabalho representa o que há de melhor na safra de música brasileira da última década. Em segundo lugar, porque Gumes, Garson e Argôlo oferecem uma análise sensível a ambas as dimensões, correlacionando a feitura do vídeo-álbum Bom mesmo é estar debaixo d’água aos dilemas e contradições da identidade política de Luna, uma “mulher, nordestina, preta”, em suas próprias palavras (Gumes; Garson; Argôlo, 2023:4), que se recusa a ser encapsulada por esses termos, embora faça questão de afirmá-los como parte de sua agenda artística-militante. No parecer que redigi, a literatura sugerida deveria auxiliar Gumes, Garson e Argôlo a deixar ainda mais explícitos os nexos entre a trajetória de Luna, filha de militantes universitários de Salvador, e suas escolhas poéticas e estéticas no universo da música popular.

Bernardo: Um ponto de destaque do texto, para além da sensibilidade no tratamento da trajetória de Luedji Luna, repousa na reflexão da “cena” musical de Salvador. Gumes, Garson e Argôlo apresentam uma cidade repleta de corpos, sonoridades e referências constitutivas do corpo de Luna – suas obras, sua militância e inspirações. O trabalho ganha consistência ao aproximar uma reflexão sobre ancestralidade, trajetória e cena e como esses aspectos produzem sonoridades e realidades. Considero interessante como as noções de “essência” e de “raiz” mobilizadas por Luedji Luna foram interpretadas no artigo: menos numa chave do plano imutável e fixo, essas categorias apontam para um “combustível da dinamicidade” da cena musical soteropolitana. Igualmente bem desenvolvidas estão as descrições do disco, dos vídeos e das músicas do álbum Bom Mesmo é Estar Debaixo d’Água. Enquanto antropólogo que aborda o teatro e suas cenas, admiro o cuidado para construir, via a tessitura das palavras, as imagens e os sons de Luna. A autora e os autores mesclam na descrição dos clipes, a leitura das imagens (o ângulo e a proximidade da câmera), o som dos vocais (o tom da voz e quem as evoca), o teor das letras (seus ritmos e métricas) e produzem uma análise dos significados acionados pela sobreposição de tantos referenciais.

Rafael: Matizadas por Gumes, Garson e Argôlo, as noções de ancestralidade e essência parecem ocupar um lugar intermediário no mapa conceitual da autora, afastando-se tanto da ideia de uma continuidade cultural total, que postula a permanência e a propagação de uma matriz africana ulterior, quanto da fragmentação (supostamente irreversível) resultante da diáspora. Nesse sentido, tais noções se aproximam da formulação utilizada por Paul Gilroy para se referir aos impasses contemporâneos na construção de identidades políticas no Atlântico Negro. Entre as principais modalidades expressivas do mundo transatlântico, a música, diz Gilroy, pode ensejar a criação de um modelo no qual o termo identidade não remeteria nem a uma essência fixa, nem a um construto “vago e contingente a ser reinventado pelos desígnios e caprichos de estetas, simbolistas e artífices da linguagem” (Gilroy, 1991:127). Chamando-a de um “mesmo mutante” [a changing same], Gilroy percebe na música o lócus principal da experimentação prática de códigos e símbolos ligados à negritude. Acredito que Bom mesmo é estar debaixo d’água seja um exemplo arejado desse “mesmo mutante” paradoxal, segundo os autores. Um paradoxo que, no entanto, não se deixa enraizar no solo imemorial de tradições culturais africanas, mas que parte delas - e da “saudade ancestral” que suscitam - para buscar pouso em outras searas. Nota-se tal movimento logo na abertura do álbum. Cantada a capella pelo poeta soteropolitano Lande Onawale, a vinheta “Uanga” (“feitiço”, na língua quimbundo) é sucedida pela canção “Tirania”, que se sobrepõe àquela por alguns segundos. Ambas falam da mesma coisa, o amor, sendo a primeira uma espécie de síntese - “O amor é coisa que mói muximba [“coração” em quimbundo], e depois é o mesmo que faz curar” - desdobrada em seguida nos versos de “Tirania”. Enquanto a vinheta centra-se na voz de Onawale e na percussão que lhe serve de acompanhamento, a canção tem como aspecto distintivo um ensemble de cordas, atributo típico da chamada música “ocidental”. Longe de ser irônico e provocativo, parece-me que o diálogo estabelecido por Luedji Luna entre essas sonoridades mostra como a apropriação de tradições diversas tem por força motriz não a busca pela autoidentidade, mas a reconstrução incessante de si mesma e a convicção de não “cantar o passado às custas do meu presente e do meu devir” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negras, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.:187).

Bernardo: Em textos das ciências sociais, gosto particularmente do debate metodológico. Ao ler como uma/um colega desenrolou sua pesquisa, ao entender quais desafios enfrentou e como contornou ou os respondeu, aprendo e me inspiro. Nesse quesito, acredito que teria sido muito interessante acompanhar, no artigo, as escolhas metodológicas de Gumes, Garson e Argôlo na confecção do trabalho. Alocado numa nota de rodapé, o debate metodológico parece marginal no balanço das páginas. Tendo a crer, contudo, que tal aspecto faz parte da espinha dorsal de nossas costuras reflexivas. Este exercício de bastidor é, ao fim, uma exposição das metodologias adotadas para fabricar um parecer. Talvez por isso mesmo, faço um convite para compartilhar as escolhas e tenho um entusiasmo especial ao ler sobre a prática constitutiva de nossos saberes.

Rafael e Bernardo: Se a tarefa de redigir os pareceres de “Por acaso eu não sou uma mulher?” foi levada a cabo com base em nossos percursos de pesquisa e preferências teóricas, este comentário crítico nasceu do interesse pela questão da produção de identidades e diferenças na esfera da cultura, bem como do compromisso com a democratização dos meios de produção do saber científico. É também uma forma de apresentar os critérios e os repertórios mobilizados para a elaboração de um parecer que, menos uma percepção absoluta sobre um assunto, é uma posição situada do saber e uma possibilidade de diálogo. Apresentado sob a forma deste coro, tal diálogo é também um convite a mais vozes.

Referências bibliográficas

  • FANON, Frantz. Pele negras, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.
  • GILROY, Paul. Sounds Authentic: Black Music, Ethnicity, and the Challenge of a "Changing" Same. Black Music Research Journal, v. 11, n. 2, Autumn, 1991, pp.111-136.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023
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