Resumo
“Quando vou transar com um cliente” – diz um garoto de programa entrevistado por Nestor Perlongher em O negócio do michê – “eu não sou eu; eu sou a fantasia do cliente”. O desejo fora da ordem se vê emaranhado, de saída, nas demandas da troca material e do imaginário que o provoca e regula. Práticas apaixonadamente transgressivas vêm de braço dado com os imperativos categóricos do comércio e da identidade. Arrebatamento e regra, acaso e cálculo, prazer e prescrição são reunidos de forma tensa e indissolúvel, não como pares de opostos bem comportados em suas casinhas, mas como vivências alternadas, simultâneas, embrulhadas umas nas outras. Na enunciação do rapaz se condensa o complexo de questões que a prostituição homossexual masculina abarca e projeta para além dela própria, e que formam a matéria desse notável trabalho, reeditado em boa hora. Trata-se de uma etnografia substancial e de um ensaio brilhante de interpretação teórica, que não apenas se destaca no importante acervo de estudos socioantropológicos de sexualidade feitos no Brasil, em sua época, como se mostra altamente proveitoso e relevante à luz dos debates atuais.Referências
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