Resumo
Neste artigo, refletimos, desde uma perspectiva discursiva, sobre o processo formal de elegibilidade de solicitantes de refúgio no Brasil. O objetivo central é sublinhar a dimensão performativa da produção do refugiado, aqui compreendido como um rótulo que depende de práticas discursivas – em especial narrativas –, de que participam os/as solicitantes, oficiais e demais atores sociais que compõem o sistema jurídico e burocrático do refúgio. Nessas práticas, o que parece estar em jogo são as competências narrativas do/a solicitante e entrevistadores/as em conformar a experiência de migração em uma matriz de inteligibilidades sobre o deslocamento humano e sobre o funcionamento da linguagem. A partir da análise de elementos de pelo menos duas importantes pontas do processo – textos de documentos normativos e entrevistas com voluntários que preparam solicitantes para suas entrevistas de elegibilidade –, mostramos como ideologias linguísticas, especialmente crenças sobre a natureza da construção narrativa, operam como protagonistas de tal processo institucional.
Referências
ACNUR. (2012) Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em 11 fev. 2024.
ACNUR. (2013) Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems. Disponível em: https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/full-report-beyond-proof-credibility-assessment-eu-asylum-systems. Acesso em 11 fev. 2024.
ACNUR. (2019) Handbook on procedures and criteria for determining refugee status and guidelines in international protection under the 1951 convention and the 1967 protocol. Disponível em: https://www.refworld.org/policy/legalguidance/unhcr/2019/en/123881. Acesso em 11 fev. 2024.
ALEXANDER, M. (1999). Refugee Status Determination Conducted by UNHCR. International Journal of Refugee Law. v.11, n.2, p.251-289.
ARANTES, P. et. al. (2016). Língua e alteridade na acolhida a refugiados: por uma micropolítica da linguagem. Fórum linguístico. v.13, n.2, p.1196-1207.
BALESTRO, A.; GOROVITZ, S. (2021). Direitos linguísticos de solicitantes de refúgio no Brasil: a presença do mediador linguístico na entrevista de solicitação de refúgio como garantia de direitos humanos. Gragoatá. v. 26, n. 54, p. 355-379.
BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (1990). Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology. n. 19, p. 59-88.
BECKER, H. (1963). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008.
BIAR, L.; SILVA, M. Narrativas da Fronteira: paisagens discursivas da imigração venezuelana no Brasil. Revista Monções, no prelo.
BIZON, A. C.; DANGIÓ, G. V. (2018). Vozes do Programa Emergencial Pró-Haiti: narrativas de racialização do ser haitiano. Revista X, v.13, n. 1, p.168-191.
BLOMMAERT, J. (2009). Language, Asylum, and the National Order. Current Anthropology. vol. 50, n. 4, p. 415-441.
BORBA, R. (2016). O (Des)Aprendizado de Si: transexualidades, interação e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
BORBA, R. (2016). Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des) identificação no Processo Transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 55, n. 1, p. 33–75.
BRUNER, J. (1990). Atos de significação. Tradução de Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
BULLA, G. et al. (2017). Imigração, refúgio e políticas linguísticas no Brasil: reflexões sobre escola plurilíngue e formação de professores a partir de uma prática educacional com estudantes haitianos. Organon. v. 32, n. 62, p. 1-14.
BUTLER, J. (1990). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
CARRANZA, I. (2010). Truth and authorship in textual trajectories. In: Schiffrin, D. et al. (ed.) Telling stories: Language, Narrative and Social Life. Washington: Georgetown University Press, p. 173-180.
CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro.
CAVALCANTI, M.; BIZON, A. (2020). Threads of a hashtag: entextualization of resistance in the face of political and sanitary challenges in Brazil. Trabalhos em Linguística Aplicada, v.59, n.1, p.1966 - 1994.
CRUZ, L. D. (2022). Ideologias linguísticas e construções de subjetividades em materiais didáticos de língua inglesa: um caso sobre refugiados. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 61, n. 1, p. 236–250.
DI CESARE, D. (2017). Imigrantes residentes. Tradução de Cezar Tridapalli. Belo Horizonte: Ed. Âyiné, 2020.
FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary: the turn of the referential screw. Revista da ANPOLL. v. 40, n. 1, p. 129-140.
FACUNDO, A. (2017). Êxodos, Refúgios e Exílios. Colombianos no Sul e Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017.
FARIA, B. (2021). (Auto)Representações sociodiscursivas de imigrantes e refugiados no contexto das “migrações Sul-Sul”. Revista da ABRALIN. v. 20, n. 3, p. 262–288.
FOUCAULT, M (1970). A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida São Paulo: Ed. Loyola, 1996.
FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal.
FRICKER, M. (2007). Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press.
GAL, S.; IRVINE, J. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.
GEORGAKOPOULOU, A. (2006). Thinking big with small stories in narrative and identity analysis. Narrative Inquiry. v.16, n.1, p.122-130.
GOFFMAN, E (1959). A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
JACQUEMET, M. (2005). The registration interview: Restricting refugees’ narrative performances. In: Baynham, M.; De Fina, A. (eds.), Dislocations/Relocations: Narratives of displacement. Manchester, UK & Northampton: St. Jerome, p. 197–220.
LABOV, W; WALETZKY, J. (1967). Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: Helm, J. (ed.). Essays on the verbal and visual arts. Seattle: University of Washington Press, p.12-44.
LANGELLIER, K. (2001). “You’re marked”: breast cancer, tattoo, and the narrative performance of identity. In: Brockmeier, J.; Carbaugh, D. (eds.). Narrative and Identity. Studies in autobiography, self, and culture. Amsterdam: John Benjamins, p.145-184.
LINDE, C. (1993). Life Stories, the creation of coherence. New York: Oxford University Press.
MAGALHÃES, B. (2014). Enacting Refugees: An Ethnography of Asylum Decisions. Tese de Doutorado. Departamento de Política e Relações Internacionais, The Open University, Londres.
MARYNS, K. (2006). The Asylum Speaker: Language in the Belgian Asylum Procedure. Manchester: St Jerome Publishing.
MISHLER, E. (2002). Narrativa e Identidade: a mão dupla do tempo. In: Moita Lopes, L. P.; Bastos, L. Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, p.97-119.
MOITA LOPES, L.P. (2006). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial.
PINTO, J. (2018). Ideologias linguísticas e a instituição de hierarquias raciais. Revista da ABPN. v. 10, Ed. Especial, p.704-720.
PINTO, J.; KRUGER, A. L. (2023). Barreiras ou pontos de inspeção? Ideologias linguísticas sobre migração e o modelo de comunicação moderno-colonial. Gragoatá. v. 28, n. 60, e-53275.
RODRIGUES, C. (2021). “Sou um corpo estranho no conjunto”: narrativas de um estudante negro migrante em uma universidade brasileira. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 60, n. 1, p. 114–125.
SHUMAN, A.; BOHMER, C. (2020). Discourse and narrative in legal settings: The political asylum process. In: De Fina, A. ; Georgakopoulou, A. (eds.), The Handbook of Discourse Studies. Cambridge: Cambridge University Press, p. 547–570.
SILVA, D. (2021). Circulação de discursos de ódio online contra refugiados: entextualização, indexicalidade e inteligibilidade. Fórum linguístico. v.18, n. 3, p. 6416- 6429.
SILVA, I. (2021). “Bota fogo nesses vagabundos!”: entextualizações de xenofobia na trajetória textual de uma fake news. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 59, n. 3, p. 2123–2161.
SILVERSTEIN, M. (1979). Language Structure and Linguistic Ideology. In: Clyne, P.. et al (eds.). The Elements: A Parasession on Linguistic Units and Levels. Chicago: Chicago Linguistic Society, p. 193-247.
SILVERSTEIN, M. (1993). Metapragmatic discourse and metapragmatic function. In: Lucy, J. (ed.). Reflexive language: reported speech and metapragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, p. 33-57.
SWEENEY, J. (2009). Credibility, Proof and Refugee Law. International Journal of Refugee Law. v.21, n.4, p.700-726.
THREADGOLD, T. (2005). Performing theories of narrative: theorizing narrative performance. In: Thornborrow, J.; Coates, J. (eds.). The sociolinguistics of narrative. Amsterdam: John Benjamins, p. 1-16.
WORTHAM, S. (2006). Learning Identity: The joint emergence of social identification and academic learning. New York: Cambridge University Press.
WORTHAM, S. (2001). Narratives in action: A strategy for research and analysis. New York: Teachers College Press.
Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Copyright (c) 2024 Liana de Andrade Biar, Flávia Rodrigues de Castro