Resumo
Examinamos aqui instâncias de mercantilização de linguagem em que fragmentos de uma “língua pequena” – a língua brasileira de sinais (libras) – figuram como valor agregado a produtos de nicho que de outro modo seriam triviais. Seguindo estudos de Sociolinguística Crítica que têm apontado o surgimento de discursos que invocam linguagem como lucro (em vez de orgulho), apresentamos dados – selecionados de perambulações por ambientes virtuais – de uma loja virtual que oferece produtos decorativos com dizeres em português transliterados para sinais de soletração em libras (datilologia). Em contraste, não encontramos quaisquer recursos de acessibilidade em libras no portal que promove a venda desses produtos. Nossa análise indica que a crescente visibilidade da libras entre as parcelas ouvintes da população propiciou a materialização de ideologias de linguagem em que a libras figura como signo de “inclusão”, “empatia”, “respeito à diversidade”. Apesar de calcadas em percepções combatidas pelos movimentos sociais surdos, essas ideologias parecem possibilitar a geração de capital solidário, um subtipo de capital simbólico. Nosso argumento, portanto, é que produtos mercantis como os analisados servem à celebração fetichizada da diversidade (inclusive linguística). Assim, a mobilização da libras como signo de “causa social” com a qual é possível engajar-se por meio do consumo acomoda o olhar ouvinte ao buscar cativá-lo. O “condoimento capacitista” do/a consumidor/a, portanto, é alicerce da tentativa de mercantilização.
Referências
ALBERTO, T.; BITTENCOURT, L.; DOMINGUES, D. (2021). “There is no love in SP”: music, graffiti, and youth cultures in political protests in Brazil. Cidades. Comunidades e Territórios, Lisboa, Au21, p. 109-123.
AFP. (2022). O intérprete de libras de Bolsonaro, o candidato ‘sem nome’ que quer ser deputado federal. Exame, São Paulo, 19 set. 2022. Disponível em: https://exame.com/mundo/o-interprete-de-libras-de-bolsonaro-o-candidato-sem-nome-que-quer-ser-deputado-federal/. Acesso em 21 dez. 2023.
APPADURAI, A. (1986). Introduction: commodities and the politics of value. In: Appadurai, A. (org.), The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, p. 3-63.
BELO HORIZONTE. (2021). Lei 11.297, de 17 de junho de 2021. Estabelece normas para garantir a acessibilidade dos deficientes auditivos à exibição de filmes nacionais e estrangeiros, a animações, espetáculos e peças teatrais em salas de cinema e de teatro do Município. Belo Horizonte: Câmara Municipal. Disponível em: https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao/lei/11297/2021. Acesso em 18 dez. 2023.
BLOCK, D. (2018). What on earth is ‘language commodification’? In: Breidbach, S.; Küster, L.; Schmenk, B. (orgs.), Sloganizations in Language Education Discourse. Bristol: Multilingual Matters, p. 121-141.
BLOMMAERT, J.; BACKUS, A. (2013). Superdiverse repertoires and the individual. In: Saint-Georges, I.; Jean-Jacques, W. (orgs.), Multilingualism and multimodality. Roterdão: Sense Publishers, p. 11–32.
BORGES, A.; DONINI, M. (2023). Tradutor de libras rouba a cena em festivais de música. Matinal, Porto Alegre, 13 dez. 2023. Disponível em: https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/reportagens-roger-lerina/tradutor-de-libras-rouba-a-cena-em-festivais-de-musica/. Acesso em 21 dez. 2023.
BRASIL. (2002). Lei 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm. Acesso em 18 dez. 2023.
BRASIL. (2005). Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em 18 dez. 2023.
BRASIL. (2010). Lei 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm. Acesso em 18 dez. 2023.
BRASIL. (2015). Lei 13.146, de 6 de junho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em 18 dez. 2023.
CAMPANELLA, B. (2020). Celebrity activism and the making of solidarity capital. In: Farrell, N. (org.), The political economy of celebrity activism. Abingdon: Routledge, p. 19-34.
CARVALHO, S. (2021). Mercantilização da linguagem na promoção do turismo de luxo na Selva Iryapú (Misiones, Argentina): autenticidade, deslocamentos e resistência. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 60, n. 2, p. 347-363.
CAVALCANTI, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, v. 15, n. especial, p. 385-417.
DANT, T. (1996). Fetishism and the social value of objects. The Sociological Review, v. 44, n. 3, p. 495-516.
DUVAL, J. (2017). Distinção. In: Catani, A.; Nogueira, M.; Hey, A.; Medeiros, C. (orgs.), Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, p. 146-147.
FARIA, J.; GALÁN-MAÑAS, A. (2018). Um estudo sobre a formação de tradutores e intérpretes de línguas de sinais. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 57, n. 1, 265-286.
GAL, S. (2023). Language ideologies. Oxford Research Encyclopedias: Linguistics, 21 jun. 2023. Disponível em: https://oxfordre.com/linguistics/display/10.1093/acrefore/9780199384655.001.0001/acrefore-9780199384655-e-996. Acesso em: 25 maio 2023.
GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: Language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.
GARCEZ, P. M.; JUNG, N. M. (2021). Apresentação: Mercantilização da linguagem no capitalismo recente: diversidades e mobilidades. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 60, n. 2, p. 338-346.
GESSER, A. (2009). LIBRAS? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola.
HARVEY, D. (2014). Seventeen contradictions and the end of capitalism. Oxford University Press.
HELLER, M. (2013). Repositioning the multilingual periphery: class, language, and transnational markets in francophone Canada. In: Pietikäinen, S.; Kelly-Holmes, H. (orgs.), Multilingualism and the periphery. Oxford: Oxford University Press, p. 17-34.
HELLER, M. (2017). Can language be a commodity? In: Cavanaugh, J.; Shankar, S. (orgs.), Language and materiality: ethnographic and theoretical explorations. Cambridge: Cambridge University Press, p. 251-254.
HELLER, M.; DUCHÊNE, A. (2012). Pride and profit: Changing discourses of language, capital and nation-state. In: Duchêne, A.; Heller, M. (orgs.), Language in late capitalism: pride and profit. Londres: Routledge, p. 1-21.
HELLER, M.; DUCHÊNE, A. (2016). Treating language as an economic resource: Discourse, data and debate. In: Coupland, N. (org.), Sociolinguistics: theoretical debates. Cambridge: Cambridge University Press, p. 139-156.
HELLER, M.; PIETIKÄINEN, S.; PUJOLAR, J. (2018). Critical Sociolinguistic research methods: studying language issues that matter. Londres: Routledge, 2018.
HILL, J. (2002). "Expert rhetorics" in advocacy for endangered languages: Who is listening, and what do they hear? Journal of Linguistic Anthropology, v. 12, n. 2, p. 119-133.
KELLY-HOLMES, H. (2014). Linguistic fetish: the sociolinguistics of visual multilingualism. In: Machin, D. (org.), Visual communication. Belim: De Gruyter, p. 135-151.
KELLY-HOLMES, H. (2020). The linguistic business of marketing. In: Thurlow, C. (org.), The business of words: wordsmiths, linguists, and other language workers. Londres: Routledge, p. 36-50.
LEITÃO, D. L.; GOMES, L. Z. (2017). Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, n. 42, p. 41-65.
LESH, K. N. (2021). Basque gastronomic tourism: creating value for Euskara through the materiality of language and drink. Applied Linguistics Review, v. 12, n. 1, p. 39-63.
LORENTZ, B. (2020). Intérprete de Libras da live de Marília Mendonça fala sobre repercussão após performance. G1, Rio de Janeiro, 10 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pop- arte/musica/noticia/2020/04/10/interprete-de-libras-da-live-de-marilia-mendonca-fala-sobre-repercussao-apos-performance.ghtml. Acesso em: 18 dez. 2023.
LYRITSAS, R. (2019). Late capitalism and the imperative of authenticity: the governance of authenticity in the neoliberal era. 2019. Tese de Doutorado em Filosofia. School of History, Art History and Philosophy, University of Sussex, Brighton.
MARTIN, M. Capital simbólico. In: Catani, A.; Nogueira, M.; Hey, A.; Medeiros, C. (orgs.), Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 109-112.
MARTINS, V.; NASCIMENTO, V. (2015). Da formação comunitária à formação universitária (e vice e versa): novo perfil dos tradutores e intérpretes de língua de sinais no contexto brasileiro. Cadernos de Tradução, v. 35, n. esp. 2, 78-112.
MARX, K. (2013 [1867]). O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. E-book.
MATTOS, M. (2020). As saias-justas do intérprete de libras de Bolsonaro. Veja, São Paulo, 18 set. 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/as-saias-justas-do-tradutor-de-libras-de-bolsonaro. Acesso em: 21 dez. 2023.
MILLER, L. (2017). Japan’s Trendy Word Grand Prix and Kanji of the Year: Commodified Language Forms in Multiple Contexts. In: Cavanaugh, J.; Shankar, S. (orgs.), Language and materiality: ethnographic and theoretical explorations. Cambridge: Cambridge University Press, p. 43-62.
MOURA, C.; BEGROW, D. D. V. (2024). Libras e surdos: Políticas, linguagem e inclusão. São Paulo: Contexto.
PACHECO, P. (2018). Intérprete para surdos “dança em Libras” e rouba a cena na Virada Cultural. UOL, São Paulo, 19 maio 2018. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/ 2018/05/19/interprete-para-surdos-danca-em-libras-e-rouba-a-cena-na-virada-cultural.htm. Acesso em 21 dez. 2023.
PIETIKÄINEN, S. (2013). Heteroglossic authenticity in Sámi heritage tourism. In: Pietikäinen, S.; Kelly-Holmes, H. (orgs.), Multilingualism and the periphery. Oxford: Oxford University Press, p. 77-94.
PIETIKÄINEN, S.; KELLY-HOLMES, H.; JAFFE, A.; COUPLAND, N. (2016). Sociolinguistics from the periphery: small languages in new circumstances. Cambridge: Cambridge University Press.
QUADROS, R. M.; KARNOPP, L. (2004). Língua de sinais brasileira: estudos lingüísticos. Porto Alegre: ArtMed.
RHODES, C. R. (2023). Language ideologies. Oxford Research Encyclopedias: Anthropology, 13 dez. 2023. Disponível em: https://oxfordre.com/anthropology/display/10.1093/acrefore/9780190854584.001.0001/acrefore-9780190854584-e-573. Acesso em: 25 maio 2023.
SEDUC-GO. (2020). Primeira-dama Michelle Bolsonaro visita escola bilíngue para surdos em Goiânia. Goiânia, 12 dez. 2020. Disponível em: https://site.educacao.go.gov.br/sala-de-imprensa/noticias3/619-primeira-dama-michelle-bolsonaro-visita-escola-bilingue-para-surdos-em-goiania.html. Acesso em: 18 dez. 2023.
SHANKAR, S.; CAVANAUGH, J. (2017). Toward a theory of language materiality: an introduction. In: Cavanaugh, J.; Shankar, S. (orgs.), Language and materiality: ethnographic and theoretical explorations. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1-28.
SILVA, D. N. (2021). “Favela não se cala”: mercantilização, materialidade e ideologia da linguagem na cooperação transperiférica. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 60, n. 2, p. 439-454.
SIMPSON, W.; O’REGAN, J. (2018). Fetishism and the language commodity: a materialist critique. Language Sciences, v. 70, p. 155-166.
SOARES, P. A. S.; FARGETTI, C. M. (2022). Línguas indígenas de sinais: pesquisas no Brasil. LIAMES, v. 22, p. 1-14.
URCIUOLI, B. (2008). Skills and selves in the new workplace. American Ethnologist, v. 35, n. 2, p. 211- 228.

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Copyright (c) 2024 Alana Fries, Pedro de Moraes Garcez