A questão dos livros: uma obra que todo bibliotecário deveria ler

A questão dos livros: uma obra que todo bibliotecário deveria ler

por Simone Lucas Gonçalves de Oliveira / Ezequiel Theodoro da Silva

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Fonte: fr.wikipedia.org

Robert Darnton é jornalista, editor, historiador, pesquisador, professor universitário, diretor da biblioteca de Harvard; suas experiências o qualificam como autoridade nos assuntos que discute. Estudioso da história do livro, especialmente após a invenção da imprensa, é um apaixonado pela palavra imprensa e pelo seu percurso na história humana, e um entusiasta pelo universo digital.

O livro é estruturado em quatro partes: introdução, parte 1-futuro, parte 2-presente e parte 3-passado. O conteúdo do livro foi desenvolvido a partir de coletâneas de produções anteriores do autor.

Na introdução, Darnton detalha o projeto Google Book Search cuja proposta foi digitalizar livros impressos de bibliotecas universitárias, numa parceria com as instituições, visando a expansão no acesso a publicações e a comercialização no mercado livreiro. Esse negócio gerava alguns questionamentos, tais como: quais seriam os benefícios para as universidades, bibliotecas e sociedade? Como ficariam os direitos autorais? Havia o risco de monopolização do acesso ao conhecimento pelo Google? Diante de tantas incertezas e desconfianças, Darnton se posicionou muito criticamente. Na perspectiva do livre acesso, o autor também apresenta o pioneirismo das bibliotecas de Harvard na digitalização de materiais impressos; dessa iniciativa decorreriam mudanças nas relações das bibliotecas com o mercado editorial e com os autores.

Na parte 1 – Futuro do livro/capítulo 1 – O Google e o futuro do livro, o autor oferece detalhes sobre a ousadia e astúcia implícitas no projeto do Google, ao mesmo tempo que visualiza impactos no mundo do livro, a partir deste empreendimento e dos conflitos dele com editores e autores. Também resgata o século XVIII, período do Iluminismo, quando a República das Letras existia, alicerçada no poder do conhecimento e no mundo das ideias. Os membros dessa República tinham dois atributos: domínio da leitura e domínio da escrita. De um lado havia autores e do outro leitores que emitiam julgamento sobre a leitura. O Iluminismo foi uma era marcada pelo intercâmbio de cartas manuscritas entre intelectuais que debatiam assuntos num fluxo constante de correspondências que cruzavam continentes. O autor faz uma crítica à República das Letras, que, sob uma fachada de instituição democrática, era elitista, palco de intrigas e disputas intelectuais e de negócios editoriais obscuros, mas, pondera, não houve aspectos negativos à altura da áurea do período que o consagrou como marco histórico das publicações, das conexões entre autores, editores e leitores, da valorização dos livros e das bibliotecas, e das discussões sobre os direitos autorais que, mesmo sendo desenvolvidos apenas em seus aspectos primários, colocavam o bem público acima do privado. Com a perda de forças do Iluminismo, surgiram a profissionalização e a divisão do conhecimento. Com a divisão das áreas vieram as publicações especializadas e o monopólio editorial na comercialização destas fontes de informação. Dois importantes acontecimentos no século XX sinalizaram mudanças na monopolização do acesso ao conhecimento: a interdisciplinaridade e a internet. Estas duas mantiveram as bibliotecas no centro do conhecimento, mas na perspectiva do livre acesso.

Na parte 1 – Futuro do livro/capítulo 2 – O panorama da informação, o autor discorre sobre o boom informacional devido à internet, o futuro das bibliotecas tradicionais, e o processo de comunicação da informação, desde a comunicação oral até os dias de hoje. As transformações no livro mudaram as formas de transmissão da informação e de produção do conhecimento e, em função disso, de contextos de uso e de finalidades variadas, a informação não é um recurso estável na sua produção, comunicação e acesso, às vezes norteada por paradigmas questionáveis, parciais e até mesmo preconceituosos, como aquele experimentado pelo autor quando era um jovem repórter: determinada notícia não seria publicada porque o personagem principal-vítima era uma pessoa negra e, no entanto, a notícia seria “marginalizada”. O autor chama a atenção sobre a importância de ser crítico diante das fontes de informação, especialmente hoje, quando qualquer um poderá criar e publicar conteúdos na internet. Recomenda cautela na avaliação de informações, compreendendo os aspectos norteadores, a procedência, o contexto da produção, a falta de controle informacional, a mutabilidade e multiplicidade de significados que podem ser atribuídos a uma única informação. Retoma o Google Book Search e, sem abrir mão das suas críticas sobre o projeto, concorda que esta iniciativa poderá tornar livros acessíveis numa escala gigantesca e romper barreiras no acesso e na produção do conhecimento, embora considere que os menos favorecidos permanecerão excluídos. O autor enaltece a importância das bibliotecas de pesquisa, pois nenhuma iniciativa externa alcançará os tesouros exclusivos dos acervos de uma biblioteca e não poderá competir com a durabilidade de seus conteúdos, pois as bibliotecas e os papeis resistem há séculos, e a tecnologia digital ainda é um recurso recente.

Na parte 1 – Futuro do livro/capítulo 3 – O futuro das bibliotecas, o autor parte do distanciamento das instituições e das suas bibliotecas da sociedade em geral, quando o Google, um buscador virtual universal, viabiliza acesso sem barreiras a uma infinidade de informações. Sugere às bibliotecas maior presença no ambiente digital com a publicação de conteúdos em texto completo e de livre acesso, especialmente informações exclusivas de seus acervos e informações de utilidade pública, devendo permanecer atentas sobre a preservação da informação digitalizada ou nascida digital, sem perder de vista o seu passado e o seu compromisso com a preservação da palavra escrita. Também incentiva os trabalhos cooperativos para o compartilhamento de informações e universalização do conhecimento. Ao item nascido digital, Darnton aponta a necessidade de se planejar a impressão sob demanda. Assim, acredita, as bibliotecas continuarão estratégicas e úteis.

Na parte 1 – Futuro do livro/capítulo 4 – Achados e perdidos no ciberespaço, o autor aborda a importância do historiador buscar explorar a fonte original do conhecimento e, nesse sentido, defende a palavra impressa. Por outro lado, se mostra entusiasmado ao se referir às facilidades do espaço virtual e do livro eletrônico.

Na parte 2 – Presente/capítulo 5-E – books e livros antigos, Darnton exalta o livro impresso, ao mesmo tempo que reconhece o avanço tecnológico e o seu impacto na transmissão da informação, especialmente pela internet. Coloca que ambos os formatos coexistirão por muito tempo, cada um com suas peculiaridades, vantagens e desvantagens. Incentiva a existência de bibliotecas híbridas.

Na parte 2 – Presente/capítulo 6 – Gutenberg-e, o autor apresenta o projeto Gutenberg-e que tinha como propósito a promoção de um novo tipo de monografia – conversão de teses de doutorado em e-books, especialmente nas áreas de história, para publicação em interfaces da internet. A iniciativa revitalizaria monografias nas áreas da história e ajudaria jovens pesquisadores a iniciarem na carreira. Mesmo tendo recebido apoio o projeto mostrou que a publicação em meio digital era complexa, burocrática, custava muito, e era sujeita aos olhares atravessados de pares que ainda resistiam à exploração do universo eletrônico. O projeto se deu entre os anos de 1997 e 2006.

Na parte 2 – Presente/capítulo 7 – Acesso livre, Darnton apresenta uma moção em favor do livre acesso a artigos científicos. A ideia era promover a livre difusão do conhecimento e abrir caminhos para a libertação das bibliotecas universitárias do grande jugo imposto pelas editoras comerciais, que historicamente precificam abusivamente as assinaturas de periódicos científicos. Nesse cenário, as bibliotecas universitárias têm assumido protagonismo essencial na digitalização de coleções, na criação de plataformas para a promoção do livre acesso aos conteúdos digitalizados e aos nascidos digitais, tendo também grande preocupação com a preservação destes conteúdos, ao mesmo tempo que tem buscado relações comerciais mais interessantes com os editores comerciais, exigindo a personalização dos pacotes de assinaturas, com a permanência única e exclusiva dos conteúdos relevantes, eliminando as duplicidades e reduzindo os custos financeiros.

Na parte 3 – Passado/capítulo 8 – Louvor ao papel, o autor critica os bibliotecários americanos que atuavam em bibliotecas públicas que compelidos pelos argumentos de que os espaços das bibliotecas atingiriam seus limites de ocupação e que os livros seriam deteriorados devido a sua composição química, desbastaram acervos. Antes de serem descartados os livros eram microfilmados, pois se acreditava que os microfilmes eram mais perenes que os próprios livros. Infelizmente, no longo prazo, a microfilmagem não se mostrou o melhor meio de preservação, embora ainda seja possível tomar nota de muitos registros contidos nos microfilmes. Como forma de reparo, políticas de preservação do livro impresso foram criadas no âmbito das bibliotecas americanas, sem, no entanto, preencher os vazios nas coleções.

Na parte 3 – Passado/capítulo 9 – A importância de ser bibliográfico, no centro das discussões está a procedência dos conteúdos acessados. O autor aborda a identificação de adulteração de publicações e exemplifica indicando as ocorrências encontradas nas produções de Shakespeare do século XVII. Tipógrafos ou editores alteravam as versões a serem publicadas sem se preocuparem com a fidedignidade dos conteúdos. Partindo disso, contextualiza a bibliografia no âmbitos dos estudos de compreensão de determinada estrutura e estilo literário, prova ou contestação da fidedignidade do conteúdo, levando em conta a data de produção, pois os estilos de redação, formas e materiais usados na confecção de um livros surgem num período e se modificam no seguinte.

Na parte 3 – Passado/capítulo 10 – Os mistérios da leitura, Darnton aborda um hábito de leitura e escrita que prevaleceu na Europa durante os séculos XII ao XVI – os livros de lugares-comuns, que eram cadernos com anotações procedentes de leituras, cujos trechos mereciam registros para contextualização com a vida cotidiana. Também continham anotações de aprendizados, visões de mundo, opinião ou crítica referente uma literatura. Eram uma espécie de literatura cinzenta, valiosos pelas anotações, desde que seus autores fossem pessoas importantes ou brilhantes intelectuais. O ato de ler e escrever deu aos leitores uma mentalidade crítica e emancipada, permitindo a eles influenciar uma nova cultura social e política.

Na parte 3 – Passado/capítulo 11 – O que é a história do livro autor situa a concepção da disciplina “história do livro” segundo a abrangência da sua finalidade: compreensão como as ideias foram transmitidas sob a forma impressa e como a palavra impressa afetou o pensamento e a conduta da humanidade. Algumas questões exemplificam a complexidade dos estudos: quais eram os textos originais de Shakespeare? O que causou a revolução francesa? Qual a conexão entre a cultura e a estratificação social? Ao se debruçarem sobre estes temas, pesquisadores de diferentes áreas, cada um ao seu modo, entendem a necessidade de compreensão do livro como fonte histórica. A história do livro, enquanto disciplina, tem se desenvolvido, embora se torne cada dia mais complexa, dada a interdisciplinaridade que a envolve. Em função disso, o autor sugere aos pesquisadores o distanciamento da interdisciplinaridade e maior foco no surgimento do livro e na sua propagação na sociedade e propõe o circuito de comunicação do livro impresso para estudos sobre a história do livro. Os elementos do circuito são: autor, editor, impressor, distribuidor, livreiro e leitores. Os elementos poderão ser estudados individualmente ou coletivamente, levando em conta os aspectos norteadores (influências intelectuais e publicidade, conjuntura economia e social e sanções e políticas legais), as suas variações na história e suas relações com outros sistemas: econômicos, políticos, sociais, culturais, etc.

Pontuo abordagens de Darnton que se referem às pautas contemporâneas das bibliotecas universitárias brasileiras: inovação constante para manterem-se importantes no cenário do avanço tecnológico, observação permanente de aspectos conservadores em relação ao acesso e à preservação dos livros impressos, maior proximidade com o público, investimento na publicação de arquivos digitais de livre acesso, criação de repositórios digitais, redução dos custos de assinaturas de periódicos científicos e de aquisição de livros impressos ou digitais, discussões cuidadosas sobre a ocupação dos espaços físicos das bibliotecas e desbaste de acervos, políticas de preservação dos conteúdos impressos e dos digitais, e questões ligadas a prevenção de plágio. É interessante como numa só obra o autor conseguiu dar conta de uma agenda tão complexa, levantando questões e propondo caminhos.

O autor também destaca uma legislação americana que determina que as produções baseadas em pesquisas financiadas sejam publicadas em interfaces de livre acesso e em texto completo. No Brasil também avançamos, embora ainda não exista uma legislação específica. Instituições como a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) exigem que as produções de pesquisas financiadas sejam publicadas em interfaces digitais, em texto completo e de livre acesso, nos repositórios das instituições dos pesquisadores.

Ao concluir a leitura reflito sobre o momento que o mundo vive – uma emergência planetária – uma pandemia – um inimigo invisível. Somos obrigados a manter distanciamento social, passamos a trabalhar no sistema home office e a encontrar nossos entes queridos, muito raramente, ou pelas redes sociais. Uma nova condição planetária que não sabemos ao certo onde vai dar. Diante disso questiono: “como ficam nossas bibliotecas e nossos livros, no contexto de uma pandemia, cujos acervos extraordinários tornam-se secundários diante da pressa de se estabelecer ordens no caos? Editoras nacionais, até então conservadoras em seus formatos, tentam “empurrar” para as bibliotecas a assinatura anual de livros digitalizados em substituição àqueles que até muito recentemente eram tão acessados por nossas comunidades. Embora se exerça a sobriedade e serenidade nas tomadas de decisões, a inquietude permanece: este momento gerará impactos nas formas como nos relacionamos com nossas bibliotecas, nossos livros, nossos leitores? Teremos uma nova condição, uma ruptura de algum paradigma? Seria muito bom, nesta hora, dialogar com Darnton.

Por fim, considero o livro uma obra de qualidade extraordinária, o autor permeia o passado e o presente do livro e faz projeções para o futuro, colocando-o como recurso vital no processo da evolução humana, ao mesmo tempo que contribui para uma melhor compreensão sobre como as bibliotecas foram social e economicamente constituídas ao longo do tempo. Portanto, se constitui uma referência para todos os bibliotecários contemporâneos. 

Referência

DARNTON, Robert. A questão dos livros. Tradução por Daniel Pellizzari. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. 231 p. ISBN 9788535916768 (broch.).

Como citar este post

SILVA, E. T.; OLIVEIRA, S. L.G. A questão dos livros: uma obra que todo bibliotecário deveria ler. Blog PPEC, v. 4, e02003, 2020. [Resenha]. ISSN 2526-9429. Disponível em: https://bit.ly/2BVLd5X. Acesso em: dia mês abreviado ano.

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