Resumo
Partimos neste trabalho da análise de certos fatos da aquisição de linguagem que nos mostram o entrelaçamento de línguas na aquisição da língua materna. Em certas condições, materialidades linguísticas originárias de mais de uma língua participam do processo de captura (LEMOS, 2002) do infans pela linguagem. Partimos de fatos linguísticos observados na fala de duas crianças de três anos de idade - uma menina brasileira e um menino franco-brasileiro em contato com o francês e o português brasileiro. Experiências temporárias ou contínuas, vividas por crianças em contato com mais de uma língua, fornecem evidências empíricas e promovem questões teóricas que se desdobram em uma indagação sobre os efeitos das línguas da infância no funcionamento linguístico do adulto. A história do falante com sua língua materna é marcada pelas representações de sua aquisição e pelos enlaçamentos no encontro com outras línguas. Seus efeitos não são previsíveis. O inconsciente não cria obstáculos para a mixagem das línguas e pode reter palavras, expressões e outros fragmentos de uma língua da infância que depois se torna estrangeira (MELMAN,1992). Este seria o caso de uma das crianças, atualmente uma jovem adulta. Através das hipóteses levantadas sobre a aquisição da linguagem e a partir de um outro observatório, voltamos nossa atenção para escritores e poetas que fizeram da trajetória linguística vivida a própria substância de seu trabalho. Afetados pela “memória representada” (PAYER, 2006) de um passado reconstruído, no qual a língua materna foi silenciada ou vivida como tal, eles elegem uma língua materna tardia, adotada, com que tecem suas obras. Elias Canetti e Aharon Appelfeld são autores característicos dessa experiência. Há em ambos a necessidade de nomear como materna a língua da criação literária. A análise de tais fatos ilumina as palavras de Milner (1990[1978]) sobre o termo lalangue: é uma língua enfatizada pela função poética e sua figuração mais direta é a língua materna.
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