Resumo
Com base em pesquisa de campo no Complexo do Alemão, um conjunto de favelas no Rio de Janeiro, este artigo discute o surgimento de recursos comunicativos que respondem à mercantilização de direitos, bens comuns e serviços, como o direito à cidade, à moradia e à segurança pública. Em interação transperiférica – isto é, em um evento que envolveu movimentos sociais de periferia da África do Sul e de diferentes favelas do Rio de Janeiro – os ativistas que observei, embora não tematizem linguagem como objeto independente, revelaram alta reflexividade sobre mercantilização de recursos comunicativos no capitalismo, particularmente atrelada ao silenciamento de negros, pobres e outras minorias. Linguagem e materialidade (do corpo e da luta contra a mercantilização de direitos) aparecem como elementos híbridos no discurso dos ativistas – ou seja, fazem parte de um todo material, nos termos de Bruno Latour, sendo estratégica e situacionalmente objetificados ou “purificados” em momentos-chave do debate. O conjunto de evidências que apresento nessa análise apontam limites para a divisão que críticos da noção de mercantilização e materialidade da linguagem (dentre eles, David Block, Marnie Holborow, William Simpson e John O’Regan) estabelecem entre discurso e realidade, ou entre epistemologia e ontologia. Para esses autores, a linguagem só pode ser metafórica, mas não literalmente, considerada uma mercadoria (material) no capitalismo, o que é contradito pelos meus dados. O artigo aponta, finalmente, que a separação entre discurso e realidade na crítica marxista dos autores é o produto de uma ideologia semiótica modernista e calvinista, não problematizada pelos autores.
Referências
BARREIRA, M. (2013). Cidade Olímpica: Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro. In: Brito, Felipe & Pedro Rocha Oliveira (orgs.), Até o último homem: Visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 129-168.
BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (2003). Voices of Modernity: Language ideologies and the politics of inequality. Cambridge: Cambridge University Press.
BLOCK, D. (2017). Political economy in applied linguistics research. Language Teaching, v. 50, n. 1, p. 32–64
BLOCK, D. (2018a). Political economy and Sociolinguistics: Neoliberalism, inequality and social class. London: Bloomsbury.
BLOCK, D. (2018b). What on earth is ‘language commodification’? In: Breidbach, S., Küster, L., Schmenk, B. (orgs.), Sloganizations in Language Education Discourse. Multilingual Matters, Bristol, p. 121–141.
BOURDIEU, P. (1977). L’économie des échanges linguistiques. Langue Française, v. 34, p. 17-34.
BURKE, P. (2004). Languages and communities in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press.
BUTLER, J. (1997). Excitable speech: a politics of the performative. London and New York: Routledge.
CARVALHO, L. (2018). Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia.
DUCHÊNE, A.; HELLER, M. Orgs. (2012). Language in Late Capitalism: Pride and Profit. London: Routledge.
FAULHABER, L.; AZEVEDO, L. (2015). SMH 2016: Removals in the Olympic City. Rio de Janeiro: Mórula.
FOUCAULT, M. (2008). The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France, 1978-79. Translated by G. Burchell. New York: Palgrave Macmillan.
GARCEZ, P. (2018). Quem é estudante falante de português em famílias de origem brasileira em Toronto, Canadá? Questões de classe. Linguagem em (Dis)curso, v. 18, n. 3, p. 729-749
GONÇALVES, R.; VALE, J. (2019). Remoções e megaeventos no Rio de Janeiro: a luta de resistência dos moradores da Vila Autódromo. Revista de Políticas Públicas, v. 23, n. 1, p. 441-455.
HART, K. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. Journal of Modern African Studies, v. 3, n. 11, p. 61-89.
HELLER, M.; DUCHÊNE, A. (2016). Treating language as an economic resource: Discourse, data and debate. In: Coupland, N. (org.), Sociolinguistics: Theoretical debates. Cambridge: Cambridge University Press, p. 139-156.
HELLER, M. (2010). The commodification of language. Annual Review of Anthropology, v. 39, p. 101–114.
HELLER; M.; MCELHINNY, B. (2017). Language, capitalism, colonialism: Toward a critical history. University of Toronto Press.
HOLBOROW, M. Language and neoliberalism. London: Routledge, 2015.
INSTITUTO LOCOMOTIVA; CUFA. (2020). “Pandemia na Favela - A realidade de 14 milhões de favelados no combate ao novo Coronavírus”. CUFA. Disponível em: https://www.cufa.org.br/noticia.php?n=NjM4 Acesso em: 20 mai. 2021
KASMIR, S. (2018). Precarity. The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. https://www.anthroencyclopedia.com/entry/precarity
KEANE, W. (2003). Semiotics and the social analysis of material things. Language & Communication, v. 23, p. 409-425.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LATOUR, B. (1994). Jamais fomos modernos. São Paulo: Ed. 34.
LOPES, A.; FACINA, A.; SILVA, D., Orgs. (2019). Nó em pingo d’água: sobrevivência, cultura e linguagem. Rio de Janeiro: Mórula.
MACHADO DA SILVA, L. A. (1971). Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Dissertação de mestrado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
MACHADO DA SILVA, L. A. (2002) Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho). Caderno CRH, v. 37, p. 81-109.
MAGALHÃES, A. (2013). O “legado” dos megaeventos esportivos: a reatualização da remoção de favelas no Rio de Janeiro. Horizontes Antropológicos. V. 40, p. 89-118.
MAHMOOD, S. (2019). Razão religiosa e afeto secular: uma barreira incomensurável? Debates do NER, v. 19, n. 36, p. 17-56.
MAUSS, M. (2003). Ensaio sobre a dádiva. In: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, p. 183-314.
MBEMBE, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 32, p. 122-151.
MILANOVIC, B. (2020). Capitalismo sem rivais: O futuro do sistema que domina o mundo. São Paulo: Todavia.
NERI, M. (2010). Desigualdade e favelas cariocas: A Cidade Partida está se Integrando? Rio de Janeiro: FGV.
PARK, J.; WEE, L. Orgs. (2012). Markets of English: Linguistic Capital and Language Policy in a Globalizing World. London: Routledge.
SAUSSURE, F. (1986 [1916]). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix.
SILVA, D.; FACINA, A.; LOPES, A. (2015). Complex territories, complex circulations: The 'pacification' of the Complexo do Alemão in Rio de Janeiro. Pragmatics and Society, v. 6, p. 175-196.
SILVA, E. (2013). Tensões sociolinguísticas na comunidade portuguesa/lusófona de Toronto. In: Moita Lopes, L. P. (org.), O português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola, p. 169-191.
SIMPSON, W.; O’REGAN, J. (2018). Fetichism and the language commodity: a materialist critique. Language Sciences, v. 70, p. 155-166.
SIMPSON, W. (2020). Producing the Eikaiwa English language lesson: A dialectical approach to the contradictions of commodity production. Journal of Sociolinguistics, v. 24, n. 4, p. 514-531.
TAN, P.; RUDBY, R. Orgs. (2008). Language as Commodity: Global Structures and Local Marketplaces. London: Continuum.
URCIUOLI, B. (2008). Skills and selves in the new workplace. American Ethnologist, v. 35, n. 2, p. 211-228.
Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Copyright (c) 2021 Trabalhos em Linguística Aplicada